No STF, Serra e Kassab justificam existência da lei da mordaça
O governador de São Paulo José Serra encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF), em junho, defesa dos artigos do Estatuto dos Funcionários Públicos do estado que impedem o professorado e demais servidores(as) de darem entrevistas. Naquele mês, o PSOL recorreu ao Supremo contra as leis da mordaça no estado de São Paulo e na capital. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 173, um instrumento jurídico utilizado para reivindicar a suspensão de ações legislativas criadas antes da Constituição mas que ainda vigoram, questiona a constitucionalidade das leis (leia aqui sobre o tema).
O governador José Serra, assim como prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, a Assembléia Legislativa do estado e a Câmara Municipal, encaminhou informações requisitadas pelo STF. No documento (leia aqui), ao tratar do mérito da questão, Serra afirma que é necessário “delinear limitações necessárias” para a conjugação de direitos expressos na Constituição com “valores e relações diferenciadas. É nessa seara que se inclui a relação entre o Poder Público e seus servidores”. Estes, diz Serra, apesar de detentores dos direitos expressos no artigo 5º da Constituição, “enquanto trabalhadores a serviço, em última análise, do interesse público, têm deveres e limitações a serem observadas”, no caso, limitações à liberdade de expressão.
O jurista Dalmo Dallari, a pedido do Observatório da Educação, analisou os documentos enviados por estado e município e afirmou que a situação processual é favorável à suspensão, pelo STF, da aplicação desses dispositivos dos estatutos que impedem o funcionalismo de se expressar livremente. “A argumentação da defesa não é consistente. As referências que fazem quanto à necessidade de delinear limitações são a situações especiais, em questões sigilosas, como em caso de alguma investigação em que é de interesse público a proibição da publicidade. São situações excepcionais que nada têm a ver com essa proibição genérica de manifestação do funcionário público”, afirma Dallari.
Uma das alegações do governador paulista é que, como a ADPF se opõe a um dispositivo de lei municipal e outro de lei estadual, essas reivindicações não poderiam ser acumuladas numa mesma ação. Para Dalmo Dallari, os argumentos levantados por Serra não invalidam a ação. “Do ponto de vista processual, há um equívoco, pois não é ação de declaração de inconstitucionalidade. No caso de ADPF, é possível numa mesma arguição se levantar a situação tanto da legislação estadual quanto da municipal”, explica. A prefeitura fez o mesmo questionamento.
A coordenadora da ONG Artigo XIX e membro da Campanha Fala Educador! Fala Educadora! Paula Martins também analisou as defesas apresentadas, por governos e casas legislativas. “Em linhas gerais, argumentam que deve ser verificado, no caso concreto, se houve limitação à liberdade de expressão ou uma defesa de interesse público. Mas a interpretação correta é que esse estatuto está limitando um direito que tem estatura superior, é direito humano indevidamente restringido”.
Ela afirma que há o uso de expressões muito genéricas que acabam proibindo a priori a manifestação do servidor público. Além disso, as defesas argumentam não haver comprovação efetiva do descumprimento do direito. “A pesquisa feita pela Ação Educativa indica que isso não é verdade. Existem casos em que esse dispositivo legal foi utilizado, vários bastante recentes, inclusive em 2009. Existe urgência na apreciação da matéria porque cotidianamente há o perigo de que novos casos surjam” (leia aqui reportagem sobre o uso da lei da mordaça em São Paulo).
Incoerência
Na defesa da lei da mordaça, Serra fundamenta, a partir do livro Curso de Direito Constitucional, que “em algumas situações, é possível cogitar de restrição de direitos fundamentais, tendo em vista acharem-se os seus titulares numa posição singular diante dos Poderes Públicos (...). Notam-se exemplos de relações especiais de sujeição, no regime jurídico que o Estado mantém com os militares, com os funcionários públicos civis, com os internados em estabelecimentos públicos ou com os estudantes em escola pública”.
A argumentação contradiz as manifestações públicas do governador, que ao apresentar projeto de lei para revogação dos dispositivos justificou que afronta a liberdade de expressão. “Há uma incoerência, uma mudança de posicionamento. É bastante preocupante e está em contradição explícita com aquilo que havia sido defendido publicamente”, diz Paula.
O excerto do livro destacado por Serra, ao dispor sobre a liberdade de expressão, ressalta que “’mesmo os servidores públicos civis podem ver restringida a sua liberdade de expressão, em favor de valores constitucionalmente impostos à ação da Administração’”.
Assim, o documento assinado por Serra conclui que os dispositivos da lei da mordaça “apesar de pré-constitucionais, a sua recepção pela nova ordem estabelecida na Carta-cidadã pode ser considerada a partir de uma interpretação conformadora ou harmonizante, sem que se possa dizer que estariam as normas a ferir preceito fundamental”.
O governador conclui com destaque para o envio, à Assembléia Legislativa de São Paulo, do projeto de lei complementar 01/2009, que propõe a revogação da lei da mordaça no estado. Ele afirma que a ampla restrição à liberdade de expressão o “incomodava”. Para Dallari, Serra “confessou que realmente está ocorrendo o descumprimento de preceito fundamental”. Dessa forma, o jurista entende que a tendência é a suspensão pelo STF, pelo reconhecimento expresso, na argumentação do governo, de que os dispositivos são inconstitucionais.
Matéria relevante
Outro fato destacado por Dallari é a declaração do ministro Carlos Britto, relator do processo, que reconhece a relevância da matéria. “Um dos argumentos do governador e do prefeito é não haver relevância. Isso fica superado”, entende Dallari.
Britto acrescenta que essa ofensa a direitos tem especial significado para a ordem social e segurança jurídica. “É uma constatação extremamente importante e feita pelo ministro relator no STF. Em face disso tudo, tenho a impressão de que existe grande possibilidade de que a decisão do STF seja pela procedência da ADPF”, conclui Dallari.
A manifestação de Britto também é considerada importante por Paula, na medida em que os documentos da defesa levantam questões procedimentais, para que o processo seja considerado incabível. “A manifestação indica que o processo será aceito e haverá tempo para que outras pessoas consigam apresentar informações adicionais, e que isso entre no mérito de se avaliar se os artigos violam ou não a liberdade de expressão dos servidores públicos. É indicativo importante”, afirma.
Campanha Fala Educador! Fala Educadora!
O Observatório da Educação da Ação Educativa acompanha o tema desde 2007 e identificou, em 18 estados do País, leis inconstitucionais que impedem funcionários públicos de se comunicarem com a imprensa. Em sete de outubro de 2008, a Ação Educativa, em parceria com a ONG Artigo 19, Apeoesp e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), lançou a campanha nacional “Fala Educador! Fala Educadora!”, em favor da liberdade de expressão de trabalhadores(as) em educação. Mais informações podem ser obtidas no blogue da campanha.
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