Depoimento de Suzana Keniger Lisbôa
da Comissão de Familiares de mortos e Desaparecidos Políticos.
A Morte e a Morte de Romeu Tuma
Breve resgate
Por Suzana Keniger Lisbôa
Por Suzana Keniger Lisbôa
Romeu Tuma esteve presente no palco dos acontecimentos relativos ao desaparecimento dos presos políticos. Como Diretor do DOPS e, posteriormente, na PF, foi ele quem "arrumou" os arquivos do órgão antes de serem tornados públicos.
Há que considerar-se, além dos documentos que diretamente envolvem Romeu Tuma na rede montada pelos órgãos repressivos para acobertar os desaparecimentos políticos e as mortes sob tortura, de que o DOPS de São Paulo não foi um mero espectador das violências cometidas pelos órgãos de repressão política, mas um de seus braços principais. Basta, para tanto, lembrar o nome do famigerado Delegado Sérgio Paranhos Fleury, que fez do DOPS/SP, uma máquina de matar, competindo palmo a palmo com a eficiência assassina do DOI/CODI. (vejam as fotos de Fleury e Tuma no livro Autopsia do Medo, de Percival de Souza, como também a afirmação de que foi Tuma que indicou ao II Exército quem seriam os responsáveis pelo sumiço dos corpos - fls. 180)
Ali, no DOPS, estava Tuma – desde 1954, conforme declara, tornando-se seu diretor em 1977 e levando consigo para a Polícia Federal, em 1983, não só os arquivos que ajudara a organizar, mas também os torturadores ali lotados, tais como Aparecido Laertes Calandra – conhecido à época como “capitão Ubirajara” – e o delegado Davi Araújo dos Santos, ambos envolvidos diretamente em torturas e assassinatos de presos políticos, e outros certamente não descobertos por nós.
As requisições de exames necroscópicos dos presos políticos, enterrados com nomes falsos ou verdadeiros, a maior parte delas marcada com um “T” em vermelho, eram todas enviadas ao DOPS, como também as fotos dos corpos, sendo que alguns dos envelopes de negativos do arquivo de fotos do IML, que encontramos vazios, contém a observação: “negativo enviado ao DOPS”. Tais fotos desapareceram com Tuma e Harry Shibata - do IML e do DOPS.
O “Xerife Tuma” cumpriu tão brilhantemente seu papel, que foi escolhido pelo General Figueiredo para Superintendente da PF em São Paulo, levando consigo os arquivos, pouco antes do ato do Governador Montoro que extinguiu o DOPS.
Quando Fernando Collor de Mello, então Presidente da República, resolveu entregar ao governo de São Paulo os arquivos do DOPS , (intermediação feita através de contatos nossos com o então Ministro João Santana, com quem militamos na luta pela Anistia e no PT), Tuma já tentava construir uma nova pose, tendo por diversas vezes afirmado publicamente que entregaria os arquivos à Luiza Erundina, então Prefeita de São Paulo e envolvida na investigação da Vala do Cemitério de Perus.
Quando Collor anunciou que entregaria os arquivos, Tuma e seus subordinados apressaram-se em “arrumá-los”. Desesperados pelo certo desaparecimento de provas contundentes que há anos buscávamos (e ainda buscamos!), fizemos vigília em frente ao prédio da PF em São Paulo , e obtivemos audiência com o então Diretor, por intermediação de Dom Paulo Evaristo Arns, que recebera denúncias de que os arquivos estavam sendo literalmente esvaziados.
De nada adiantaram os telefonemas de D. Paulo, as pressões... Não temos como calcular a extensão do retirado, mas arquivos inteiros referentes a “Colaboradores” e à “Guerrilha do Araguaia” estavam vazios.
Ficaram, entretanto, provas dos assassinatos sob tortura, em uma pasta de fotos desaparecida do IML. Uma dessas fotos, a de Sonia Maria de Moraes Angel Jones, assassinada sob torturas em 30 de novembro de 1973, foi mostrada a sua mãe, Cléa Moraes por Harry Shibata, que declarou ter sido a foto entregue a ele por Tuma. (Teria ele guardado outras?). Sonia, enterrada com nome falso, teve seu corpo reconhecido por ocasião das investigações procedidas durante o governo de Luiza Erundina.
Coletamos, também, documentos que provam a participação do Tuma. Relato e documento alguns fatos concretos que o envolvem, certamente não os únicos, mas aqueles que posso lembrar e comprovar através de documentos.
1. Luiz Eurico Tejera Lisbôa, meu marido, constou da lista de desaparecidos políticos até abril de 1979, quando pudemos localizá-lo enterrado, sob o nome falso de Nelson Bueno, no Cemitério de Perus. No dia da votação do projeto de Anistia, em 22 de agosto de 1979, a denúncia do encontro de seu corpo foi feita no Congresso Nacional. Somente após esse fato, “apareceu” o inquérito, feito com nome falso e que concluía pelo seu suicídio. A versão oficial diz que Luiz Eurico suicidou-se, em um quarto de pensão na Liberdade, após disparar 3 ou 4 tiros a esmo pelo quarto. Deitado, uma arma em cada mão, disparara talvez contra o vento, para depois buscar abafar o tiro que se deu na cabeça, envolvendo a arma em uma colcha que cobria seu corpo. Essa é a explicação para as marcas que aparecem no quarto onde foi “encontrado” seu corpo e na colcha que lhe cobria.
Através de processo na Vara de Registros Públicos, busquei a retificação dos registros de óbito. Nesse processo, o Juiz solicitou que fossem localizadas cartas endereçadas a Luiz Eurico, que faziam parte dos documentos com ele apreendidos. Dois ofícios foram dirigidos pelo Juiz a Tuma, sem obter resposta. Oficiado, então, o Secretário de Segurança, Tuma respondeu que no DOPS nada constava em nome de Nelson Bueno. Dois novos ofícios foram dirigidos a Tuma e outro ao Secretário de Segurança, agora em nome de Luiz Eurico, todos sem resposta. (anexo 1)
Obtive a retificação, e permaneceu a versão oficial de suicídio até 1990, quando Caco Barcelos, repórter da Rede Globo, fez um programa sobre a Vala de Perus e apareceram novos fatos. Envolvida com as questões mais gerais dos mortos e desaparecidos e, sem assistência jurídica, perdi todos os prazos para judicialmente processar a União pelo assassinato e ocultamento de seu corpo.
Ao examinar os arquivos do DOPS, em 1991, lá encontrei uma lista, endereçada a Tuma, datada de 05 de novembro de 1978, com o nome de “Retorno ao Brasil” (anexo 2).
Junto ao nome de Luiz Eurico, lê-se – morreu em setembro de 1972. Ou seja, Tuma sabia da morte de Luiz Eurico em novembro de 1978, antes, portanto da minha descoberta e denúncia. E sabia por que dispunha o arquivo do DOPS do inquérito em nome de Nelson Bueno e de ficha em nome de Nelson Bueno, fato que negou existir ao responder ofício ao Juiz (anexo 3).
Não é uma simples acusação: Tuma mentiu ao Juiz! E ocultou as informações sobre o desaparecimento e assassinato de Luiz Eurico.
2. Do mesmo anexo 2 - o "Listão do Tuma" - retiramos informações que nos permitiram localizar o local de sepultamento de Ruy Carlos Vieira Berbert, único paradeiro de desaparecido político identificado a partir da abertura dos arquivos do DOPS (fls. 57 do anexo 2). Teríamos também localizado Maria Augusta Tomas e Márcio Beck Machado (fls. 48 e 46), fato que já era de nosso conhecimento, apesar de termos perdido a corrida para a repressão, que chegou antes ao local e sumiu com os restos mortais. Jane Vanine Capozzi, desaparecida no Chile também é dada como morta.
Aos demais desaparecidos citados no "listão", é dada a informação: "não está em Cuba".
3. Flávio de Carvalho Molina constou da lista dos desaparecidos políticos até 1979, quando localizamos ofício (anexo 4) endereçado ao Juiz Auditor de São Paulo, assinado por Romeu Tuma, informando que ele fora morto e enterrado pelo nome de Álvaro Lopes Peralta. Somente ao descobrirmos esse ofício, a família de Flávio certificou-se de sua morte. Enterrado no cemitério de Perus, com esse mesmo nome falso informado por Tuma, seu corpo permanece, até hoje, dentre as mais de 1000 ossadas não identificadas da Vala de Perus. Maria Helena, sua mãe, que acompanhava cotidianamente nossas lutas, é hoje uma senhora idosa, sem ter podido, tantos anos depois, ver o enterro do corpo do filho que a mão de Tuma ajudou a esconder...
4. Helder José Gomes Goulart foi assassinado sob torturas no DOI-CODI de São Paulo. Seus restos mortais foram identificados durante o governo de Luiza Erundina e trasladados para Mariana, em Minas Gerais.
O laudo necroscópico de Helder, assinado por Harry Shibata, o mais “famoso” dentre os médicos legistas que assinaram laudos falsos, atende à requisição de exame de Romeu Tuma (anexo 5). A versão de Tuma na requisição ao IML é de que Helder morrera às 16 horas do dia 16 de julho de 1973, no Museu Ipiranga. Entretanto, deu entrada no IML antes de ser morto - às 8 horas, e três horas antes do tal tiroteio no Museu, que teria ocorrido às 11.30h. Na verdade, foi assassinado sob tortura, sendo que a foto localizada nos arquivos do DOPS tem indícios de que tenha sido tirada quando ainda vivia.
5. Norberto Nehring - assassinado sob torturas em 1970, é de Tuma a versão oficial à imprensa: suicidara-se em um quarto de hotel, perto do DOPS. Não tenho o documento citado na matéria de Emanuel Neri (anexo 6).
Temos a certeza de que, se tivesse permanecido no DOPS de São Paulo uma pasta com todos os ofícios expedidos por Romeu Tuma, certamente teríamos acesso aos nomes falsos com que foram enterrados os desaparecidos e, possivelmente, aos restos mortais e às circunstâncias das mortes.
Para Tuma, há que valer-se das palavras do filho do assassino Sérgio Paranhos Fleury, conforme publicou a Folha de S. Paulo, na última eleição:
“Questão de afinidade"
Filho de Sérgio Paranhos Fleury, ícone da repressão e da tortura no regime militar, o também delegado Paulo Sérgio Fleury justifica assim o seu voto em São Paulo: "Pelo relacionamento pessoal e profissional que existiu, nós vamos apoiar e votar em Romeu Tuma".
Suzana Keniger Lisbôa é integrante da Comissão de Familiares de mortos e Desaparecidos Políticos
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