Sujeito/abjeto. VILLAÇA


LOGOS 25: corpo e contemporaneidade. Ano 13, 2º semestre 2006
Sujeito/abjeto

Resumo
Abjeção é o espaço da dessemelhança e da não-identidade. Apontar o monstruoso, o abjeto, funciona como um poderoso aliado do que Foucault chamou de sociedade panóptica, na qual comportamentos polimorfos são extraídos do corpo dos homens mediante múltiplos dispositivos de poder. A nomeação do monstro alivia a ameaça interna que é co-estruturante do homem. A partir dessas idéias, o presente artigo discute a tradição filosófica racionalista em crise desde Foucault, Derrida e Deleuze.
Palavras-chave: Corpo, racionalidade, abjeção.
Abstract
Abjection is the place of non-identity. To point out the monstruous, the abject, functions as a powerful allied of what Foucault called the panoptic society, in which one polimorphic behaviors are taken from human bodies. To recognize the monster comforts the internal threat that is co-structurating of man. From these ideias on, the present article argues about the racionalist philosophical tradition in crisis since Foucault, Derrida and Deleuze.
Keywords: Body, racionality, abjection.
Resumen
Abjección es el espacio de la no-identidad. Apuntar el monstruoso, el abjecto, funciona cómo un poderoso aliado de lo que Foucault llamó de sociedad panóptica, en la cuale comportamientos polimorfos son extraídos del cuerpo de los hombres mediante múltiplos dispositivos de poder. La nominación del monstruo alivia la amenaza interna que es co-estructurante del hombre. A partir de esas ideas, el artículo discute la tradición filosófica racionalista en crisis desde Foucault, Derrida y Deleuze.
Palabras-clave: Cuerpo, racionalidad, abjección.
“A consciência é bem mais uma mão que tateia do que um olho”. (De l’abjection) Marcel Jouhandeau
Nízia Villaça
Professora titular da ECO/UFRJ, pesquisadora do CNPq e do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea), coordenadora do grupo ETHOS: Comunicação, Comportamento e Estratégias Corporais. Autora de Em nome do corpo (com Fred Góes, em 1998); Em pauta: corpo, globalização e novas tecnologias (2000); Impresso ou eletrônico? (2002); Plugados na moda (2006); O novo luxo (2006) e A edição do corpo. (2007).
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A racionalidade soberana sempre esteve ameaçada pelos limites da animalidade e da nadificação objetal, pelo lado escuro da identidade subjetiva estável, um oco onde o sujeito pode cair, quando sua identidade é posta em questão. A nomeação do abjeto se inscreve no movimento de mascarar a ferida que constitui o texto primitivo do próprio corpo enquanto finito. A abjeção é o espaço da dessemelhança e da não-identidade. Apontar o monstruoso, o abjeto, funciona como um poderoso aliado do que Foucault chamou de sociedade panóptica, na qual comportamentos polimorfos são extraídos do corpo dos homens mediante múltiplos dispositivos de poder (SILVA, 2000, p.46). A nomeação do monstro alivia a ameaça interna que é co-estruturante do homem.
A visão do corpo, objeto da medicina e da biologia, se abriu às ciências humanas que o revelaram trabalhado pelo inconsciente, a sexualidade, a linguagem, atravessado pelo imaginário, pelo fantasmático e também construído pelo social, como produto de valores e crenças culturais. Entra em crise o distanciamento entre sujeito e objeto, a dificuldade de separar o mesmo do dessemelhante diante dos novos impactos das tecnologias comunicacionais, biológicas e da sociedade de consumo, cujas modificações contínuas desafiam os corpos e a subjetividade com formas abertas em perene ressemantização.
O sujeito perde progressivamente seu pathos autoritário, sua referencialidade, estabilidade e controle sobre o objeto, assumindo a etimologia de subjectum, assujeitado (KRYSINSKI apud VILLAÇA, 1996, p. 34). Diminui sensivelmente a distância ótima que facultava o discernimento, a classificação e os expurgos efetuados pelos mecanismos da consciência. Ora, como bem acentua Henri-Pierre Jeudy (2006), na esteira de Nietzsche, o corpo pensa na imanência mais radical e a representação desta atividade pela consciência corresponde apenas a uma pequena razão, mais grosseira que o pensamento necessário ao nosso organismo. O corpo, como irrepresentável, impõe, freqüentemente, para além de nossa consciência e a despeito dela, sua própria razão, tomada, às vezes, como signo patológico, abjeto. Transformam-se hoje os lugares do sujeito e do objeto, deslocam-se e desconstroem-se a res cogitans e a res extensa. O objeto perde sua consistência referencial, a hibridação, a desfronteirização, a interatividade sobem à cena. O projeto se despe das certezas de um futuro e torna-se devir que acolhe o aleatório. O trajeto perde a linearidade, dejetos são reaproveitados, o abjeto se multiplica na produção artística, sobretudo. Como bem mostra, por exemplo, a arte de Artur Barrio (2001). A tradição filosófica racionalista entra definitivamente em crise com autores como Foucault, Derrida, Deleuze que radicalizaram as tarefas realizadas por Freud, Nietzsche e Marx. O descentramento do sujeito, sua sobredeterminação, sua complexidade são discutidos juntamente com os processos de reconstrução em bases em que o importante é o acolhimento da alteridade, a capacidade de afetar e ser afetado (DELEUZE, 2005, p.79).
O desafio das fronteiras
“O abjeto é repulsivo porque manifesta uma confusão de limites, que pontua, fratura e fragmenta a suposta unidade [...] dos sujeitos hegemônicos e do corpo político da nação”.
Júlia Kristeva
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Diante dos avanços da genética, da informática e da presença de um mercado mirabolante e catalisador, recente manchete em jornal fala sobre a necessidade de “Definir a Vida”. A ressignificação do humano está em pauta com a discussão de suas relações com as novas dimensões do objeto, incluindo suas versões tecnológicas, imagéticas e a reflexão sobre o papel que o corpo assume no momento atual.
As transformações que atingem o trânsito sujeito/objeto estão no cerne de três mutações: informática, genética e economia (GUILLEBAUD, 2001). No campo da informática, homem e máquina são comparados, se conectam, hibridam, competem. Para os adeptos da inteligência artificial, os mantenedores da “teoria forte”, dever-se-ia fazer luto da especificidade humana ou da diferença ontológica entre os homens e as máquinas. Apesar de haver aqueles cientistas que trabalham com a “teoria fraca”, é o radicalismo da primeira que marca o ar do tempo. Concomitantemente, a opinião e as mídias continuam confusamente a divulgar uma indistinção entre o homem e a máquina. Esporadicamente, jornais audiovisuais, literatura e cinema agitam esta hipótese sensacional e amontoam cenários povoados de robôs triunfantes. No lugar de serem elaboradas para simular ou reconstituir a vida, as máquinas já podem ser concebidas para serem implantadas no interior mesmo do ser vivo, fazendo corpo com ele. Então, o encontro entre a máquina e o ser vivo, não se faz por limitação, mas por imbricação: próteses, implantes de toda espécie. O mito agora não é aquele do golem, mas do cyborg, versão moderna do homem-máquina, cujo corpo incorporou extensões eletrônicas ou informáticas que multiplicam as capacidades físicas ou mentais. A imprensa científica faz constantemente eco às inovações e pesquisas sempre mais fantásticas. A máquina coloniza o homem, o penetra, o completa e, no limite, o abole.
Por outro lado, sob a influência do mercado, o ser vivo se arrisca a tornar-se um objeto de apropriação, de comércio e de lucro. Remetendo-nos a Kant, o homem em seu corpo e no seu ser não podia ser instrumentalizado, não podia ser utilizado para qualquer outro fim que não ele mesmo. Era a época do nascimento da indústria e época em que se iniciava a reificação do trabalhador. Também Espinoza na sua Ética considerava o homem um Deus para o homem. De um modo geral, para a filosofia ocidental, o próprio da humanidade era não ser apenas um objeto no mundo. O direito, depois da abolição da escravatura, estabeleceu a indisponibilidade da pessoa humana. É esta indisponibilidade que tem que ser avaliada no momento em que se patenteiam o genoma ou que se vendem órgãos.
Quanto às descobertas das ciências cognitivas, elas caminham no mesmo sentido. O organismo humano seria uma maquinaria certamente mais complexa, mas da mesma natureza que a dos animais, afirmam alguns.
A abjeção, enquanto perda de sentido do humano, ronda este universo. Por um lado, é nomeada, visando ao asseguramento e a cristalização da mesmice individual e coletiva; por outro, é agente produtor de transformação e permeabilidade. A questão do abjeto, do informe e do monstruoso, como afirma uma das sete teses sobre a monstruosidade de Jeffrey Jerome Cohen (2000), surge como advertência contra a exploração dos territórios incertos,
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como dispositivo de controle ou pode funcionar afirmativamente como política do respeito às diferenças e mecanismo de resistência.
O monstruoso tomado como abjeção ameaça e atrai. Nele se confundem duas forças opostas: a tendência à metamorfose, o devir como experimentação de todas as nossas potências expressivas ou o pânico de se tornar outro (GIL, 2000).
No contemporâneo, quando a identidade do humano está mais que nunca em jogo, recorre-se aos monstros para testar o limite de nossa humanidade, para exorcizar a falta através de experimentações monstruosas. Na verdade, a extensão dos direitos do homem a toda a natureza, bem como certas ciências como a Etologia, contribuem, paradoxalmente para o desaparecimento das fronteiras, quando aponta as afinidades entre a vida das espécies animais e o homem.
Corpos pós-humanos
A civilização ocidental se desenvolveu a partir da dicotomia do mesmo e do diferente e, para lidar com a multiplicidade de culturas, procurou uma verdade transcendental que balizasse seus referentes, garantindo uma epistemologia fundada nos princípios de perfeição, estabilidade, permanência, unidade e racionalidade. Para Jean Pierre Vernant (1991, p.31), a alteridade, nesse sentido, é condição de identidade. A partir de tal modelo, construiu-se um corpo ideal em oposição a um corpo monstruoso ou abjeto.
Percebe-se que a desconstrução do logos, na tarefa de sustentar o sentido de um centro e sua autoridade contra as margens, se espelhou e se desdobrou no colapso do humano como categoria demarcada. Para a filosofia moderna, não interessava a substância corpórea como tal, mas a instância abstrata, lugar fundador do conhecimento. O corpo mesmo deveria ser transcendido, banido. O humano se confundia com o possuidor do sentido do self, como um sujeito contínuo com suas experiências. O colapso dessa visão humanista, que normalmente identificava o sujeito com o sexo masculino, nos tocou a todos, como bem acentua Margrit Shildrick (1996), a propósito do lugar feminino, visto, daquela ótica, como instância monstruosa.
Numa tradição datada pelo menos dos parâmetros pitagóricos, o corpo masculino foi associado ao limite e o feminino ao sem limite, evidenciado na gravidez, lactação, menstruação etc. As mulheres estavam fora de controle, imprevisíveis, vazadas: monstruosas e ameaçadoras.
A obra de Lucy Irigaray (1985, p.54) sobre o feminino se inspira no trabalho de Bakhtin e nos corpos da Idade Média para recuperar a relação entre o pensamento e o corpo sensível, já que as mulheres, na ordem patriarcal, foram consideradas incapazes de produzir pensamento verdadeiro.
Para Bakhtin, os corpos modernos foram caracterizados por sua aparência acabada, diferindo dos modelos rabelaisianos e sua relação direta com a vida social e o cosmo como um todo. Os corpos do Iluminismo assumiram uma mesma unidade, evitando os sinais de dualidade ou paradoxalidade: a morte separou-se do nascimento; a velhice, da juventude. Pelo contrário, os corpos em Rabelais se renovavam e renasciam porque os acontecimentos de sua esfera são desenvolvidos na fronteira que divide um corpo do outro.
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A morte no corpo grotesco não põe fim a nada de essencial, pois ela não diz respeito ao corpo procriador; aliás, ela renova-o nas gerações futuras. Os acontecimentos que o afetam se passam sempre nos limites de dois corpos, por assim dizer no seu ponto de interseção: um libera a sua morte, o outro o seu nascimento, estando fundidos (no caso extremo) numa imagem bicorporal. (BAKHTIN, 1996, p. 281).
Duas versões do monstruoso conviveram em maior ou menor grau na pré-modernidade e Renascimento: uma visão crítica, de fundo moral, e uma carnavalizante, na qual o comer é um prazer da carne. Cenas do comer grotesco aparecem na literatura cômica e dramática do Renascimento e do Barroco, sendo instâncias clássicas a obra de Rabelais, Gargântua e Pantagruel, e Hanswurst, do teatro popular.
Para o moderno, é o outro que precisa ser excluído para poder manter seus limites. O outro é o que ameaça pela sua diferença e deve ser nomeado como tal. É interessante sublinhar que o excesso de semelhança também é considerado perigoso, o que pode ser exemplificado pelo filme Gêmeos, mórbida semelhança, de Cronenberg, tradição que já aparece em Aristóteles e suas leis de semelhança(1). O importante é manter a separação. Para Shildrick (Op. Cit., p. 8), o interessante nos monstros é que eles se constituem como espectros do mesmo, enquanto alteridade sempre presente. Trata-se, como dizia Derrida (1981, p.33), não só de différence mas différance.
Na modernidade, uma política de identidade e diferença garante as margens de segurança e de perigo. O diferente precisa ser colocado fora das fronteiras: negros, estrangeiros, animais, classes inferiores, doentes e mulheres. São corpos considerados ameaças à norma, significantes transgressores.
Normalmente entendido como algo de não-usual, algo que foge aos padrões naturais, a mostruosidade foi confrontada com a razão. Em On monsters and Marvels (2), Ambroise Paré (1573) cita a imaginação, o sono da razão, como uma das causas da fascinação e temor provocados pelos monstros. Sobre o período renascentista, Luís Cláudio Figueiredo, sobre a dinâmica de subjetivação e dessubjetivação, salienta o temor do contágio das fronteiras, devido ao encontro com novos povos, resultante das grandes descobertas (FIGUEIREDO, 1992, p. 168).
O estudo do monstruoso tem estado no centro das discussões contemporâneas, opondo a uma visão iluminista de pura razão, a força desestabilizante do pensamento pós-estruturalista. O que se percebe na pós-modernidade é que um “ar do tempo” se delineia, no qual o imaginário do monstruoso assume importância crescente num momento de ameaça ao “humanismo”. Com a etiqueta “neobarroco”, Omar Calabrese se refere à atmosfera que abrange desde as teorias científicas (catástrofes, fractais, estruturas dissipativas, teorias do caos, teorias da complexidade e assim por diante) a certas formas da arte, da literatura, da filosofia e do consumo cultural (CALABRESE, 1987). É a perda da integridade, da globalidade, da ordenação, em troca da instabilidade, da polidimensionalidade, da mutabilidade. É por isso que uma teoria científica, que diz respeito a fenômenos de flutuação e turbulência e um filme que concerne a mutantes de ficção científica são aparentados.
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Com relação a esse imaginário que nos ronda, sempre mais disforme, as posturas e interpretações variam. Por um lado, a indústria cultural, sobretudo via ficção científica, busca vulgarizar uma estética do irrepresentável. Por outro lado, minorias, antes excluídas pelo imaginário racional, tentam se afirmar por meio da instabilidade e hibridização proporcionadas pelas novas tecnologias, ou apostar na teratologia como meio de positivar novas subjetividades (posturas tribais) ou ainda cultivar os espetáculos monstruosos num viés de ridicularização do simplório (programas de auditório como Domingão do Faustão, Programa Silvio Santos).
Uma infinidade de programas de televisão, filmes sobre cyborgs, o desconhecido e alienígenas, prateleiras inteiras de literatura popular e acadêmica se multiplicam a respeito do assunto. A preocupação com os fronteiriços, as aberrações tornam-se sempre mais circences. Mary Douglas, em Purity and Danger, sugere uma possível explicação para esse tipo de fenômeno na relação entre o corpo e a estrutura social. Para a autora, o corpo é um modelo que pode dar apoio à definição de qualquer sistema e seus limites podem representar fronteiras precárias ou ameaçadas. Nesse sentido, temos de estar preparados para atender o corpo como símbolo da sociedade e para ver nele reproduzidos, em uma escala menor, os perigos e poderes creditados à estrutura social (DOUGLAS, 1966, p.138).
O período pós-moderno e cibernético da tecnologia das comunicações e da visualização em que vivemos torna permeáveis as fronteiras dos antigos sistemas às margens de nossa cultura, resultando num grande interesse em definir os limites do corpo físico e do corpo social. Tal questão parece ligada diretamente à problemática do poder e suas margens. As mudanças trazidas pela tecnocracia abalam as relações binárias mente/corpo, cultura/corpo e cultura/natureza, exigindo, como aponta Virgínia Eubanks (1996), novas acomodações ou quebra das antigas categorias de identidade e alteridade. Os recentes fenômenos ligados ao movimento dos não-integrados aos fluxos urbanos nas grandes metrópoles é um exemplo da desestabilização da relação centro/periferia, quando a globalização desorganiza os nichos de pobreza e, paradoxalmente, põe em órbita os desorbitados. Os novos trânsitos que se delineiam, as possibilidades de resistência, são objetos de autores como Antonio Negri e Michael Hardt (2005).
O fato é que a desestabilização da ordem moderna está em curso. Nas artes, a estética monstruosa focaliza sempre mais os aspectos “baixos” do corpo, bem como a hibridização sexual e o obsceno a fim de provocar a desestruturação estética da burguesia. Tal postura pode, por exemplo, ser observada na ficção de Dalton Trevisan, quando desmonta os mitos burgueses pelo tratamento grotesco (VILLAÇA, 1983). Personagens ébrios, desempregados, velhos, são utilizados como significantes dos valores burgueses esvaziando-os concomitantemente. Também na dança são valorizados os movimentos corporais não consagrados pela coreografia clássica, privilegiando, inclusive, experimentos ligados ao cotidiano e ao desafio dos limites do corpo: Béjart, Pina Bausch, Débora Colker, Regina Miranda, Grupo Corpo e tantos outros grupos dos festivais contemporâneos. A imagem corporal, no teatro, disputa hoje com a hegemonia da palavra a preferência de diretores como, por exemplo, Moacyr Góes, Gabriel Villela, Denise Stocklos e Gerald Thomas, fazendo com que, freqüentemente, as fronNízia
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teiras entre a cena dramatúrgica e a circense desapareçam. Nas artes plásticas, sobretudo a body art é representativa dessa estratégia do monstruoso como indistinção de fronteiras na criação de um estilo corporal mais intenso.
Em meio à discussão entre humanismo e pós-humanismo, perguntamo-nos se a tão aludida valorização do corpo no rompimento de todos os seus limites o libera realmente ou se apenas vivemos tempos de hiperbolização das disciplinas foucaultianas, transformando-nos em pós-corpos (HALBERSTAM, LIVINGSTON, 1984).
O corpo pós-humano é causa e efeito das relações pós-modernas de poder e prazer, virtualidade e realidade, sexo e suas conseqüências. O corpo pós-humano é uma tecnologia, uma tela, uma imagem projetada; é um corpo sob o signo da Aids, um corpo contaminado, um tecnobody um queer body.
A desmaterialização do corpo pós-moderno, as desconformidades do apelo ao grotesco, as formas híbridas e protéticas do contemporâneo, a quebra dos limites da espacialidade corporal apelam para um repensar o imaginário da invasão em suas formas tecnovirtuais.
A bandeira do Cyborg, o fim das dualidades?
O manifesto Cyborg, de Donna Haraway, linha da exploração do monstruoso tecno, pretende construir um mito político, irônico, fiel ao feminismo, socialismo e materialismo, fiel como blasfêmia mais que como adoração ou identificação.
Segundo a autora, a ficção científica está povoada desses seres no limite do natural e do construído. A medicina moderna também é povoada de cyborgs com os acasalamentos entre organismos e máquinas. O sexo do cyborg restaura algumas das mais fascinantes réplicas barrocas dos fetos e dos invertebrados (interessantes profilaxias orgânicas contra o heterossexismo). Como mapeamento ficcional de nossa realidade social e corporal, os cyborgs são uma fonte imaginativa que sugere algumas associações muito frutíferas. A biopolítica foucaultiana seria uma premonição flácida da política dos cyborgs, que Haraway considera um campo em expansão.
Para a autora, no final do século XX somos todos quimeras, híbridos, teorizados e fabricados como máquina e organismo, somos cyborgs. O cyborg é nossa ontologia, determina nossa política, imagem condensada de imaginação e realidade material interligadas para estruturar qualquer possibilidade de transformação histórica. Na tradição da política e da ciência ocidentais – do capitalismo racista comandado pelos homens, passando pela ideologia do progresso, pela apropriação da natureza para produção de cultura, pela reprodução do eu a partir dos reflexos do outro –, a relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras.
O objetivo do ensaio de Haraway é, numa perspectiva não-naturalista e pós-moderna, imaginar utopicamente um mundo sem gênero, um universo sem gênese que pode ser um mundo sem fim. A encarnação do cyborg está fora da história da salvação. Caberá às mulheres usar o mito cyborg como arma de criatividade e não se deixarem aprisionar pela codificação tecnológica.
O cyborg não cai nas armadilhas do bissexual, simbiose pré-edipiana, trabalho não-alienado e outras tentações de integridade orgânica por meio de uma apropriação de todas as partes numa unidade final. Ele foge da história
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marxista ou psicanalítica, do trabalho de dominação progressiva da mulher/natureza a partir de uma unidade original.
Ele não se define na oposição entre público e privado, mas numa polis tecnológica parcialmente baseada na revolução das relações sociais no oikos, a casa. Está em questão a formação da totalidade a partir de fragmentos, inclusive aqueles polarizados e de dominação hierárquica. Ao contrário de Frankenstein, o cyborg não espera que o pai o salve com um companheiro que o torne completo. Ele não sonha com a comunidade a partir do modelo da família orgânica.
O cyborg não reconheceria o paraíso, não é feito de barro e não pode sonhar com a volta ao pó. Filho ilegítimo do militarismo e do capitalismo patriarcal, para não mencionar o socialismo de Estado, ele é infiel às origens.
Para Haraway, três rupturas tornam possível uma análise político-ficcional ou político-científica.
Quanto à relação entre o humano e o animal, o sistema de dominações não funciona mais por meio da medicalização ou da normalização, mas por meio de um sistema de redes, reelaboração das comunicações e administração de tensões. A tática contra essa integração nas redes será então a de superpor natureza e cultura, promovendo uma estratégia cyborg monstruosa, ilegítima e singular.
Com relação ao animal humano e à máquina, a tecnologia abre novas concepções de máquina e organismo, antes considerados como textos codificados, por meio dos quais participávamos do jogo de escrever e ver o mundo. Hoje, as fronteiras se confundem entre natural e artifical, corpo e mente, autodesenvolvimento e projeto exterior e a visão cyborg pós-moderna discute a cultura primitiva do organismo biológico e dos fundamentos ontológicos da epistemologia “ocidental”. A propósito da dinâmica físico/não-físico, o mito cyborg se refere a fronteiras violadas, fusões potentes, possibilidades perigosas que as pessoas progressistas poderiam explorar como parte do trabalho político necessário.
Uma das premissas é que grande parte dos socialistas americanos e das feministas vê dualismos profundos entre corpo e mente, animal e máquina, idealismo e materialismo nas práticas sociais. A necessidade de unificar pessoas que tentam resistir à intensificação global de dominação nunca se mostrou tão aguda. Para Haraway, uma guinada de perspectiva levemente perversa poderia tornar-nos capazes de clamar por outros significados, bem como por outras formas de poder e prazer em sociedades mediatizadas pela tecnologia.
O mito cyborg tem sua fase de dominação e abstração final, mas também pode ser olhado de forma diversa, sem medo do parentesco animal/máquina, humano/animalesco e o físico/não físico, visão dualista e ilusória. É uma provocação a ser pensada.
Escritura e abjeção
“Tomava as palavras como a quintessência das coisas. Nada me perturbava mais do que ver meus garranchos trocando pouco a pouco seu br
ilho de fogos-fátuos pela pálida consistência da matéria” (Jean-Paul Sartre).

Para finalizar, gostaria de estabelecer uma relação entre a escritura, o desejo e os lugares do sujeito e do objeto.
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A psicanálise fala do objeto do desejo construído no triângulo edipiano. Segundo esta figura, o pai é o suporte da lei e a mãe o protótipo do objeto. A tese segundo Kristeva, explode em contradições, pois antes existem pré-objetos ou pólos de atração pela procura do ar, do alimento, do movimento. Para Winnicott, no processo de constituição da mãe como o outro, há uma série de semi-objetos transicionais, da indiferenciação à discreção. Há também uma gradação na separação: privação real do seio, castração simbólica. Gradação que constitui, como mostrou Lacan, a relação de objeto enquanto instrumento para mascarar a angústia fundamental (KRISTEVA, 1980, p.43).
É a propósito da fobia do pequeno Hans que Freud aborda a questão crucial da constituição do sujeito e a relação objeto. O medo primeiramente poderia ser uma ruptura do equilíbrio bio-pulsional. A constituição da relação de objeto seria uma reiteração do medo, alternada com equilíbrios precários. A fobia de Hans dá margem a que Kristeva trabalhe a cadeia significante como fundada no fetiche, na substituição. O signo não é a coisa mas assim mesmo a mãe é o inominável mas assim mesmo eu falo. A falta leva à cena o signo, o sujeito, o objeto. Linguagem da falta do medo da ameaça e da margem. O escritor é um fóbico que consegue metaforizar para não morrer de medo, mas para ressuscitar nos signos.
É interessante a leitura das estratégias provenientes do corpo abjeto na escritura sobre a AIDS, o corpo do aidético que alberga o abjeto. Alberto Sandoval-Sánchez, com o monstro em suas entranhas, busca reinventar na escritura sua identidade gay, bem como a consciência latina. No início, não há linguagem, mas a escritura torna-se uma prática cultural crítica, o cordão umbilical em direção da abjeção, do exílio, da homossexualidade e da latinidade “o abjeto é a única via para recuperar minha corporalidade em um sistema de saber que sempre procura transcender ou sublimar a materialidade do corpo, seus processos biológicos, a experiência do sofrimento e a realidade da morte, desestabilizando a homogeneidade da cultura hegemônica. O processo de subjetivação torna-se instável e dramático, a beira da dissolução. O espaço que preocupa o excluído não é uno nem homogêneo, nem totalizante, mas divisível, pregueado, catastrófico de confins fluídos” (SANDOVAL-SÁNCHEZ, 2003, p. 249).
O romance Domingo, de Francisco Slade (2003), também explora os valores da abjeção. O vazio, já clássico, atribuído ao dia da semana que dá nome ao livro, dissemina, em toda a estrutura, uma ameaça de dissolução e caos por meio de elementos do thriller policial e assassinatos aleatórios, impregnando a narrativa de questões filosóficas em que o nada se inscreve. É como se qualquer coisa de imprevisível e pavoroso, de certo modo pior do que uma doença e do que a morte (pois é não-forma, não-vida na vida) estivesse prestes a manifestar-se. O desequilíbrio ameaça o texto. É sintomática a febre que se apodera da personagem e torna-a impulsiva e quase alucinada: “já não sabia se ia ou lembrava”(SLADE, 2003, p.29). Os próprios caracteres gráficos alteram-se tomados pela alta temperatura que a tudo contamina: “aí não vi mais nada mesmo! FEBREeeBREeatiro, esvazio o PENTEFEBRE PLÁ! PLÁ!” (2003, p.28).
O romance é paradoxal do momento em que a narrativa policial, cuja origem se encontra na afirmação do raciocínio lógico, se constrói concomitantemente à falência do sujeito que, mais que a verdade, busca a si mesmo. O que
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o torna um eu para si mesmo, além de estar trancado em seu corpo – pergunta-se? As ações e reflexões caminharão paralelamente, indo do questionamento da identidade ao acolhimento da falta original que sugestivamente descreve como coincidindo com o entregar-se à palavra, à escrita e seus mistérios, sua monstruosidade, sua perdição, sua abjeção. “Você vê as palavras se mexendo? Pra que me afundar nesse meio lodaçento das palavras, por que procurar isso?... Aí percebo que já estou na contenda; eu pulo, pra dentro do monstro. É afinal tudo que um homem tem, as suas frases”(Idem, ibidem, p.124). O lugar da escritura é como, em Celine, um jogo fascinante da decomposição/composição da dor, abominação e êxtase.
No momento dos fluxos globais que atravessamos, os roteiros da abjeção se multiplicam, se sofisticam na produção do que Suely Rolnik denomina subjetividade-luxo e subjetividade-lixo (2004). As diversas fronteiras se diluem sem que os processos de inclusão e exclusão sejam eliminados. Periféricos, subdesenvolvidos, pornográficos, forasteiros de todo tipo, vagueiam na cultura em que a produção da subjetividade prêt-à-porter gera uma nova cultura do lixo e do abjeto. Produção discursiva infinita de um mundo na fuga do imundo.
Notas
1 Sobre a questão do mesmo ver BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1990. Sobre o assunto ver: ROSSET, Clement. Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989
2 PARÉ, Ambroise. On Monsters and Marvels.  Chicago: University of Chicago Press, 1982.
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Referências bibliográficas
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BARRIO, Artur. A metáfora dos fluxos 2000/1968 (catálogo). São Paulo: Paço das Artes/Secretaria de Cultura, 2001.
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