quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Carta da viúva de Paulo Freire sobre a Veja

Na edição de 20 de agosto a revista Veja publicou a reportagem O que estão ensinando a ele? De autoria de Monica Weinberg e Camila Pereira,
ela foi baseada em pesquisa sobre qualidade do ensino no Brasil. Lá pelas tantas há o seguinte trecho:

"Muitos professores brasileiros se encantam com personagens que em classe mereceriam um tratamento mais crítico, como o guerrilheiro argentino Che Guevara, que na pesquisa aparece com 86% de citações positivas, 14% de neutras e zero, nenhum ponto negativo. Ou idolatram personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização. Entre os professores ouvidos na pesquisa, Freire goleia o físico teórico alemão Albert Einstein, talvez o maior gênio da história da humanidade. Paulo Freire 29 x 6 Einstein. Só isso já seria evidência suficiente de que se está diante de uma distorção gigantesca das prioridades educacionais dos senhores docentes, de uma deformação no espaço-tempo tão poderosa, que talvez ajude a explicar o fato de eles viverem no passado".

Curiosamente, entre os especialistas consultados está o filósofo Roberto Romano, professor da Unicamp. Ele é o autor de um artigo publicado na Folha, em 1990, cujo título é Ceausescu no Ibirapuera. Sem citar o Paulo Freire, ele fala do Paulo Freire. É uma tática de agredir sem assumir.
Na época Paulo, era secretário de Educação da prefeita Luiza Erundina.

Diante disso a viúva de Paulo Freire, Nita, escreveu a seguinte carta de repúdio:

"Como educadora, historiadora, ex-professora da PUC e da Cátedra Paulo Freire e viúva do maior educador brasileiro PAULO FREIRE --
e um dos maiores de toda a história da humanidade --, quero registrar minha mais profunda indignação e repúdio ao tipo de jornalismo, que, a cada semana a revista VEJA oferece às pessoas ingênuas ou mal intencionadas de nosso país. Não a leio por princípio, mas ouço comentários sobre sua postura danosa através do jornalismo crítico. Não proclama sua opção em favor dos poderosos e endinheirados da direita, mas , camufladamente, age em nome do reacionarismo desta.

Esta vem sendo a constante desta revista desde longa data: enodoar pessoas as quais todos nós brasileiros deveríamos nos orgulhar.
Paulo, que dedicou seus 75 anos de vida lutando por um Brasil melhor, mais bonito e mais justo, não é o único alvo deles. Nem esta é a primeira vez que o atacam. Quando da morte de meu marido, em 1997, o obituário da revista em questão não lamentou a sua morte, como fizeram todos os outros órgãos da imprensa escrita, falada e televisiva do mundo, apenas reproduziu parte de críticas anteriores a ele feitas.

A matéria publicada no n. 2074, de 20/08/08, conta, lamentavelmente com o apoio do filósofo Roberto Romano que escreve sobre ética, certamente em favor da ética do mercado, contra a ética da vida criada por Paulo. Esta não é, aliás, sua primeira investida sobre alguém que é conhecido no mundo por sua conduta ética verdadeiramente humanista.

Inadmissivelmente, a matéria é elaborada por duas mulheres, que, certamente para se sentirem e serem parceiras do "filósofo" e aceitas pelos neoliberais desvirtuam o papel do feminino na sociedade brasileira atual. Com linguagem grosseira, rasteira e irresponsável, elas se filiam à mesma linha de opção política do primeiro, falam em favor da ética do mercado, que tem como premissa miserabilizar os mais pobres e os mais fracos do mundo, embora para desgosto deles, estamos conseguindo, no Brasil, superar esse sonho macabro reacionário.

Superação realizada não só pela política federal de extinção da pobreza, mas , sobretudo pelo trabalho de meu marido – na qual esta política de distribuição da renda se baseou - que demonstrou ao mundo que todos e todas somos sujeitos da história e não apenas objeto dela. Nas 12 páginas, nas quais proliferam um civismo às avessas e a má apreensão da realidade, os participantes e as autoras da matéria dão continuidade às práticas autoritárias, fascistas, retrógradas da cata às bruxas dos anos 50 e da ótica de subversão encontrada em todo ato humanista no nefasto período da Ditadura Militar.

Para satisfazer parte da elite inescrupulosa e de uma classe média brasileira medíocre que tem a Veja como seu "Norte" e "Bíblia", esta matéria revela quase tão somente temerem as idéias de um homem humilde, que conheceu a fome dos nordestinos, e que na sua altivez e dignidade restaurou a esperança no Brasil. Apavorada com o que Paulo plantou, com sacrifício e inteligência, a Veja quer torná-lo insignificante e os e as que a fazem vendendo a sua força de trabalho, pensam que podem a qualquer custo, eliminar do espaço escolar o que há de mais importante na educação das crianças, jovens e adultos: o pensar e a formação da cidadania de todas as pessoas de nosso país, independentemente de sua classe social, etnia, gênero, idade ou religião.


Querendo diminuí-lo e ofendê-lo, contraditoriamente a revista Veja nos dá o direito de concluir que os pais, alunos e educadores escutaram
a voz de Paulo, a validando e praticando. Portanto, a sociedade brasileira está no caminho certo para a construção da autêntica democracia.
Querendo diminuí-lo e ofendê-lo, contraditoriamente a revista Veja nos dá o direito de proclamar que Paulo Freire Vive!

São Paulo, 11 de setembro de 2008
Ana Maria Araújo Freire".

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

DESCOLAndo Lucro

Há algum tempo, um empresário convidou-me para conhecer sua indústria e participar da reunião de diretoria, onde os responsáveis pela produção buscavam compreender como seria possível otimizar os resultados na linha de montagem.
Logo no inicio, o diretor geral leu em voz alta a missão da empresa e destacou a pauta central daquele encontro: qualidade, afinal, era tempo de competição e as peças deveriam ser produzidas dentro dos padrões internacionais de qualidade. Qualquer deformidade deveria ser notada e resolvida, caso contrário, o produto era excluído da moldagem e do processo de embalagem. Os aprovados deveriam ser etiquetados com um certificado que garantisse a procedência do produto, facilitando o seu ingresso em mercados extremamente concorridos. Entre ISOS para lá e cá, completou o diretor, que o selo deveria estar em inglês, respeitando o fenômeno da Globalização.
Um dos coordenadores dizia de modo enfático e disciplinado: "não podemos permitir qualquer desvio nos produtos, e o gradiente deve alcançar uma média maior que 70%". E concluiu afirmando que "as exigências do mercado estão cada vez mais rígidas, e a única forma de manter a rentabilidade é a aprovação nas avaliações desenvolvidas pelas instituições respeitadas pelo mercado". O coordenador de testes explanou em tom frio e técnico, sobre os métodos de avaliação dos produtos, explicando que todas as avaliações seguiam os padrões das melhores instituições, o que valorizava a marca da empresa.
Depois, apresentando o Boletim de ocorrência (B.O.) relatou os defeitos mais comuns apresentados pelos produtos, destacando a inadequação ao sistema internacional de rolamento, a falta de firmeza durante a execução dos testes e níveis de aproveitamento abaixo da média das peças saudáveis.
O analista de mercado, um exemplo de capital humano e apresentado como o guru do dono da empresa, buscou interpretar as novas tendências mercadológicas, alegando que o setor privado gere melhor que o público, e que as privatizações são inevitáveis, possibilitando em médio prazo a expansão dos negócios e o alcance de maiores receitas.
O representante dos investidores estava atento a tudo, com olhar de fiscal de preços tabelados e, em vários momentos, fez intervenções extremamente interessantes. Por exemplo, repetiu por diversas vezes que o investimento que fazia era de longo prazo, a um custo elevado e que suas vontades deveriam ser respeitadas, conforme um tal artigo do Regimento Interno. Concluia seu argumento afirmando que "pagava para ter resultados, e que estava cansado de discursos teóricos e pouca prática".
O ambiente ficou tenso, mas ao término da reunião, o Diretor geral falou durante alguns minutos e conseguiu seduzir todos com uma citação de algum livro de auto-ajuda (possivelmente fornecido pelo guru), algo parecido com "a união revela o caminho, se Deus quiser". Todos sorriram e sairam comentando sobre a inteligência daquele diretor. O mais empolgado era o representante dos investidores que dizia: "É um filósofo, é um pensador".
Ao sair daquela pálida construção, percebi que era uma escola. Dormi assustado com o pesadelo.
Acordei.