ADORNO, ARTE E EDUCAÇÃO: NEGÓCIO DA ARTE COMO NEGAÇÃO. LUIZ HERMENEGILDO FABIANO

ADORNO, ARTE E EDUCAÇÃO:
NEGÓCIO DA ARTE COMO NEGAÇÃO
LUIZ HERMENEGILDO FABIANO*
RESUMO: O eixo temático desta investigação trata de compreender
que a obra de arte corporifica na sua forma interna uma autonomia
relativa com relação à realidade empírica sobre a qual se torna reflexão
crítica. Ao se caracterizar como mediação com a realidade social
que a produziu, a arte é por isso mesmo a sua negação. É esse princípio
de negação determinada, em que se condensam na obra de arte
as antinomias e os antagonismos como antíteses da sociedade enquanto
problema de sua forma interna, o elemento ao qual Theodor
W. Adorno atribui dimensão epistemológica. Nessa categoria do conhecimento
assim concebida, pela perspectiva estética, a razão instrumental
como práxis brutal da sobrevivência é concretamente
questionada na sua forma restritiva de conhecimento.
Palavras-chave: Arte. Estética. Mediação. Negação. Razão instrumental.
ADORNO, ART AND EDUCATION: ART BUSINESS AS NEGATION
ABSTRACT: The main investigation in this paper aims at
understanding that a work of art in its internal form gets a relative
autonomy from the empiric reality of which it becomes a critical
reflection. As mediation to the social and historical reality that
produced it, art is characterized as a negation of this same reality. This
principle of determined negation as an antithesis of society is
condensed in a work of art as the problem of its internal form, an
element to which Theodor W. Adorno conferred an epistemological
dimension. In this category of knowledge, considered through the
aesthetics perspective, the instrumental reason as a brutal praxis of
surviving is concretely questioned in its restrictive form of knowledge.
Key words: Art. Aesthetics. Mediation. Negation. Instrumental
reason.
* Doutor em Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação, professor de Métodos e
Técnicas de Pesquisa da Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR).
496 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003
Disponível em
processo de massificação cultural, tendo-se em mente o
conceito de indústria cultural1 pelo imediatismo de sua
expressão, não expressa conteúdos culturais como processo
civilizatório e, portanto, de autonomia do indivíduo. Muito pelo
contrário, os produtos culturais (se é que assim se possa designálos)
veiculados no contexto da sociedade de massa, embora contenham
elementos de cultura, não é essa a finalidade ou função que
os constitui. O cerne, isto é, o núcleo que dá sustentação a essa
forma cultural apropriada ideologicamente é a dinâmica consumista
consolidada pelo processo industrial como universo social unidimensionalizado.
Obviamente, não se pretende aqui relegar a importância ou a
própria historicidade na qual o processo de industrialização ocorre,
mas evidenciar que, concomitantemente a essa conquista técnica e
humana, o seu desenvolvimento resulta num interesse exclusivo dos
aspectos técnico-comerciais, em detrimento do desenvolvimento
social e humano. A cultura, nesse ambiente social industrializado,
tem por alvo não o indivíduo ou a construção de sujeitos, mas
exatamente a sua objetificação, para reificá-lo no processo de
produção.
Ao se tomar por princípio que o sistema da indústria cultural
reorienta as massas, pouco lhes permitindo a evasão do cerco que
exerce ao lhes impor esquemas de comportamento, os quais exploram
a fraqueza do ego social, justifica-se compreender criticamente os seus
mecanismos ardilosos. Pois “o encorajamento e a exploração da
fraqueza do eu, à qual a sociedade atual, com sua concentração do
poder, condena de toda maneira seus membros” (Cohn, 1994, p. 94),
levam a consciência a um estado regressivo.
A negação do pensamento, a diversão como resignação e estar
de acordo com o sempre igual e semelhante como um princípio
de identidade se torna elemento central de sustentação desse
sistema industrial, já que é sua cria. O princípio da identidade,
consubstanciado nessa estrutura social como justificativa e confirmação,
é o processo pelo qual o conceito se iguala à coisa. Assim, a
ideologia cristaliza-se e impõe-se como modelo de verdade existencial
pelos valores que inculca, estabelecendo-se como modelo de
realidade indiscernível.
A partir do fato de que o embrutecimento e a regressão dos
sentidos humanos pelo processo de produção e reprodução desse
Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003 497
Disponível em
sistema social constituem a entropia da subjetividade, Adorno busca
na estética contemporânea a viabilidade de um resgate da percepção
dos sentidos. O caráter de não-identidade e de não-imediaticidade
da arte moderna é que Adorno vai diferenciar como traço de
sobrevivência estética com relação aos fetiches totalitários inculcados
pela indústria cultural.
O entendimento do qual se parte, tomando-se a acepção
adorniana, é o de que a obra de arte não estabelece uma identificação
imediata, mas de mediação com a realidade social que a
produziu. Assim entendida, ela se corporifica na sua forma interna,
de uma autonomia relativa com relação à realidade empírica sobre a
qual se torna reflexão crítica e negação. É esse princípio de negação
determinada, em que se condensam na obra de arte as antinomias e
os antagonismos como antíteses da sociedade enquanto problema de
sua forma interna, o elemento ao qual Adorno atribui dimensão
epistemológica. Nessa categoria de conhecimento assim concebida,
pela perspectiva estética, a razão instrumental como práxis brutal
da sobrevivência é concretamente questionada na sua forma restritiva
de conhecimento. E se a dimensão estética da obra artística por si
só não se constitui como determinante de mudança das condições
sociais, nela está contida pelo menos a possibilidade de articular
tais mudanças, tomando-se por base a mediação com a realidade
histórico-social que a produziu, sem contudo ser a sua afirmação.
Mas, contrariamente, a forma pela qual uma obra artística é
estruturada acaba por estabelecer a negação de si mesma como
expressão imediata da realidade empírica na qual fora gerada. Essa
negatividade empírica é que a torna o ser que é e lhe confere a
autonomia pela qual a realidade social é mediada.
Tal negatividade está consubstanciada, entretanto, nas concepções
teóricas mais amplas de Adorno no tocante à natureza da relação
entre teoria e transformação social. Buck-Mors, em Origen de la
dialéctica negativa, ao admitir que Adorno jamais explicou de todo tal
relação, comenta que “parece claro que veía en la negatividad crítica
una fuerza creativa en sí misma, creía que través de su propria fuerza
podía al menos alcanzar el conocimiento de la verdad, y que la
transformación resultante en la ‘conciencia’ conduciría de algún modo
a la praxis social” (Buck-Mors, 1981, p. 92).
O caráter de negatividade e de não-identidade da obra
artística como negação plena do conteúdo social, isto é, “negação
498 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003
Disponível em
determinada” na conceituação de Adorno, potencializa a arte como
conhecimento crítico da sociedade. Sua fruição não se dá por mero
consumo ou por ser coisa desfrutável, mas numa relação de
apropriação da sua lógica interna, da sua lei formal, elementos
pelos quais se dão as injunções sociais que na obra de arte estão
mediadas.
Diferentemente dessa condição, nos produtos da indústria
cultural a própria imediaticidade com que os bens culturais se
identificam com a lógica do mercado de forma absolutizada torna o
processo de mediação inviável. E isso ocorre em razão de as
injunções sociais que aí se operam serem explicitadas tão direta e
mecanicamente que acabam não se convertendo na forma da obra.
O produto estético formaliza uma lógica própria e particular que
ao mesmo tempo se descola da logicidade do real que o produziu e,
embora não seja a sua identidade total, com ela se identifica.
Todavia, essa realidade histórico-social aí se fala numa outridade
que é a forma da obra, a correspondência dialética em cujo processo
tal realidade, em estado de suspensão, diz-se outras. Não é por acaso
que Adorno observa não ser apenas uma analogia o meio pelo qual
as obras de arte refletem a violência e a dominação da realidade
empírica. Assim, observa o autor, tal relação de negação e apropriação
da realidade nos aspectos formais e de conteúdo dos princípios
artísticos que a constituem se convertem na forma da obra.
A especificidade das obras de arte, a sua forma, não pode enquanto conteúdo
sedimentado e modificado negar totalmente a sua origem. O êxito estético
depende essencialmente de se o formato é capaz de despertar o conteúdo
despertado na forma. Geralmente a hermenêutica das obras de arte é, pois,
a transposição dos seus elementos formais em conteúdos. No entanto, estes
não pertencem directamente às obras de arte como se elas recebessem simplesmente
o conteúdo da realidade. O conteúdo constitui-se num movimento
contrário. Imprime-se nas obras que dele se afastam. O progresso artístico,
tanto quanto acerca dele se pode falar de modo convincente, é a totalidade
desse movimento. Participa do conteúdo mediante a sua negação
determinada. Quanto mais energicamente acontece, tanto mais as obras de
arte se organizam segundo uma finalidade imanente e se constituem justamente
assim, de modo progressivo, no contato com o que elas negam. (Adorno,
1998, p. 161)
A constatação dos princípios consumistas no processo de
desenvolvimento desse tipo de sociedade industrial determina, no
entanto, a “barateza dos produtos de luxo fabricados em série (...)
Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003 499
Disponível em
evidencia que o caráter mercantil da própria arte está em vias de se
modificar” (idem, ibid., p. 147), incluindo-se também entre os
bens de consumo.
Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em
que é algo em si mesmo. O valor de uso da arte, seu ser, é considerado um
fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia
das obras de arte, torna-se seu único valor, a única qualidade que
elas desfrutam. É assim que o caráter mercantil da arte se desfaz ao se realizar
completamente. Ela é um gênero de mercadorias, preparadas, computadas,
assimiladas à produção industrial, compráveis e fungíveis, mas a arte como
um gênero de mercadorias, que vivia de ser vendida e, no entanto, de ser
invendível, tão logo o negócio deixa de ser meramente sua intenção e passa
a ser o seu único princípio. (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 148)
Mesmo a sua autonomia relativa, assegurada pelo fato de a
obra artística seguir sua própria lei, negando assim o caráter
mercantil da sociedade; ao longo de toda a história burguesa ela
sempre esteve associada a uma autonomia tolerada. Sua condição de
mercadoria, entretanto, por mais que a indústria cultural lhe
imponha o status de circulação como mero valor de troca, por tantas
mediações do mercado com o artista, segundo Adorno, acaba
escapando, ainda que em certa medida apenas, a exigências
determinadas do mercado. A falta de finalidade da obra de arte para
os fins que o mercado impõe, apesar de se traduzir também nas
finalidades de tal imposição como coisa desfrutável e/ou entretenimento,
não reduz a grande obra de arte, entretanto, a um mero e
simples objeto de consumo. A relação estabelecida com a arte requer
níveis de apropriação da sua lógica interna, da lei formal que a
produziu, diferentemente dos produtos culturais da indústria
cultural, em que a relação é de consumo imediato.
A constatação de Adorno, na Dialética do esclarecimento, de
que “a falta de finalidade da grande obra de arte moderna vive do
anonimato do mercado” (idem, ibid., p. 147), resgata a condição
de ambigüidade da obra de arte entre mercado e autonomia, na arte
burguesa. O que lhe confere a possibilidade de negócio não é,
todavia, o que lhe atribui a condição absoluta de mero valor de
troca e de consumo. Se supostamente a veiculação ou o acesso, pelo
barateamento, às obras de arte significasse de fato uma ascensão das
massas a uma cultura dita mais elevada no sentido de emancipação
e, conseqüentemente, isso estivesse representando a democratização
da cultura, sempre restrita a poucos, poder-se-ia aceitar que não se
500 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003
Disponível em
trata de degradação, mas sim de socialização da arte. Com relação
aos bens culturais tomados como a possibilidade de inserir as
massas nas áreas em que antes estavam excluídas, isso significa, na
avaliação de Adorno, que “a eliminação do privilégio da cultura pela
venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas
áreas de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas
condições existentes, justamente para a decadência da cultura e para
o progresso da incoerência bárbara” (idem, ibid., p. 145).
A cooptação que a indústria cultural faz desse princípio, para
inviabilizar tal exercício emancipatório mediado pela obra de arte,
manipula o seu acesso e extensão social, porém jamais a verdade
histórico-social que nela está mediada. Com relação à realidade, a
transcendência numa obra de arte não é algo para além do real, mas
uma espécie de intervenção aguda naquilo que na realidade está
ocultado. Se a vulgarização estética veiculada amplamente pela
indústria cultural reflete a coerção do modelo econômico que nela
se oculta, a estética, num sentido mais verdadeiro e conseqüente,
tomado como uma categoria do conhecimento crítico da sociedade,
não é apenas um conjunto axiomático de explicação do real. Em tais
circunstâncias, ela se torna uma espécie de ultrapassagem dessa
imposição histórica que, embora engendre sua forma interna
deixando-lhe por herança as suas contradições, é por isso mesmo sua
possibilidade de transformação. Evitar que esse processo de
contradição aflore e reverbere no social é a perspectiva com que a
indústria cultural trata de forma alienante os conteúdos estéticos
que veicula.
Tal entendimento de que, na constituição estética de uma obra
de arte, os conteúdos sociais são mediados, ao interpretar-se os seus
elementos constitutivos, isto é, a sua forma interna, são os conteúdos
históricos que se dizem. No entanto, por não ser a obra de arte a
realidade mesma, é nessa negatividade de uma relação não imediata
com a empiria que as ações históricas do homem se dizem por um
outro estado de reflexão. Isso equivale a dizer que o princípio de nãoidentidade
da grande obra de arte – garantia da sua autonomia – é o
princípio pelo qual é possível na arte um exercício de liberdade.
Neste aspecto, está contida no estético uma espécie de
inconsciente histórico que, ao ser interpretado, permite um trânsito
mais consciente do sujeito na apreensão do objeto ou mesmo da
reciprocidade entre ambos. A arte, neste sentido, consolida-se como
intercâmbio entre sujeito e objeto, exigindo o diálogo do sujeito
Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003 501
Disponível em
com o seu outro, processo pelo qual é possível simbolizar o mundo.
Não se trata, entretanto, numa concepção adorniana, de identidade
entre ambos, mas de desestabilizar os princípios pelos quais a
verdade só se revelaria na proeminência de um ou de outro.
A realidade que a arte pretende ser e não é confere-lhe o status
de contradição por sua natureza mimética. A realidade que ela não
é, no entanto, atrai pela realidade que ela re(a)presenta, isto é, o
que ela diz por aquilo que é interpretada. E isso desdiz a imediaticidade
da relação direta com o objeto representado para exigir do
sujeito a mediação e a apropriação do recorte criativo que se
estabelece no entrelaçamento dinâmico do sujeito na apreensão do
objeto. Subjetividade e objetividade então se compõem como o
objeto que se mostra esteticamente a exigir do sujeito que o revele
como o seu outro. É nessa dimensão do estético como inconsciente
histórico que, ao ser interpretado, descama linguagens outras, para
além daquelas que a obra de arte negaria se a realidade se revelasse
de imediato como verdade objetiva. E por que negaria é que a obra
de arte tensiona constantemente o intercâmbio com a objetividade
que a produz, tornando-se assim o seu conteúdo de verdade. É nessa
negação tensa, todavia, que a representação da obra não é mero
reflexo daquilo que está confirmado como objetividade.
Pelo fato de a perspectiva estética na obra de arte reportar-se
ao real como representação e não como decodificação do objeto é
que na sua constituição o objeto se dilui numa subjetividade. Pois,
ao apreendê-lo, devolve-o carregado de outros códigos que desmentem
a unidimensionalidade com a qual se mostra. A obra de arte
torna conotativa a relação do objeto que, tensionado na sua
prepotência de expressar a realidade reduzida a si mesmo, busca, no
intercâmbio da subjetividade que o expressa a transgressão da
unilateralidade com que pretendia manifestar-se. A dimensão
metafórica remete a um contradictum daquilo que denotativamente
se revelava por unicidade pragmática e, no caso, por racionalidade
regressiva. A relação de interpretação da realidade altera-se, para
assim compreendê-la e intervir noutras camadas possíveis.
A dimensão estética como elemento constitutivo da obra de
arte não é, portanto, apenas o que viabiliza à obra sua fruição. É o
componente indissociável que, ao mesmo tempo em que rouba da
obra a correspondência imediata que ela pretende com a realidade,
dá-lhe por excelência a condição da linguagem. A estética inviabiliza
na obra qualquer transparência – o que seria a sua própria anulação
502 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003
Disponível em
– para traduzir nos ocultamentos que lhe são inerentes os conteúdos
polissêmicos que melhor apreendem a multiplicidade de ocorrências
do movimento histórico que a permeia. Nesse processo, a reflexão
inaugura-se. A reflexão deve ser entendida, neste sentido, como nãoresignação
e resistência do sujeito a todo clichê que envolve o plano
da consciência, truncando assim a apreensão da verdade como
capacidade de ação no mundo. O ocultamento, isto é, a constituição
lúdica com a qual a obra redesenha expressivamente as impressões que
o seu contexto determina, surge não de maneira institucional, mas
da forma arbitrária de como esteticamente o real é apreendido. É
também em razão disso que as contradições sociais – material
histórico – estão mediadas na obra de arte como material estético.
A relação das obras de arte com o seu conteúdo de verdade é,
portanto, vivenciada num estado de extrema tensão. Ao mesmo
tempo em que ela possui verdade como aparência, o seu conteúdo
de verdade aparece naquilo que nega tal aparência. No seu conteúdo
de verdade, como diz Adorno, a filosofia e a arte convergem, pois “a
verdade da obra de arte que se desdobra progressivamente é apenas
a do conceito filosófico” (Adorno, 1998, p. 151), já que a obra não
é o conceito em si. Nessa semelhança de filosofia e arte é necessário
perceber-se que “o conteúdo de verdade das obras não é o que elas
significam, mas o que decide da verdade ou falsidade da obra em si,
e só esta verdade da obra em si é comensurável à interpretação
filosófica e coincide, pelo menos segundo a idéia, com a verdade
filosófica” (idem, ibid.).
É necessário observar, seguindo o argumento de Adorno, que
tal relação com a arte é muito difícil à consciência atual, “fixada no
concreto e na imediaticidade, (...) embora sem ela não surja o
conteúdo de verdade: a genuína experiência estética deve tornar-se
filosofia, ou então não existe” (idem, ibid., p. 152). E é no
momento de universalidade, o que a obra na sua especificação possui
como linguagem sui generis, que a condição da possibilidade de
convergência entre arte e filosofia deve consolidar-se, segundo o que
considera Adorno. Para o autor, isto posto, revela que
Esta universalidade é coletiva, da mesma maneira que a universalidade filosófica,
para a qual outrora o sujeito transcendental era o signum, remete para
o sujeito coletivo. Mas, nas imagens estéticas, o seu elemento coletivo é justamente
o que se subtrai ao eu: a sociedade é assim imanente ao conteúdo
de verdade. O que aparece, mediante o qual a obra de arte ultrapassa de longe
o puro sujeito, é a erupção da sua essência coletiva. (Idem, ibid.)
Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003 503
Disponível em
O dado coletivo não é, porém, nas obras de arte, a separação
do sujeito, mas por meio dele é que a reação coletiva se revela pelo
seu movimento idiossincrático. E na perspectiva da interpretação
filosófica, Adorno observa que esta deve construí-lo inviolavelmente
no particular, pois, “graças ao seu momento subjetivamente
mimético e expressivo, as obras de arte desembocam na sua objetividade;
não são nem o puro movimento nem a sua forma, mas o
processo entre ambos solidificados, e tal processo é social” (idem,
ibid.).
A partir dessa interação, a obra de arte remete, assim, para
um coletivo que na verdade é síntese de uma coletividade que lhe
constituíra a forma. No entanto, não é só o que aparece na forma
objetivamente que é o seu conteúdo de verdade, mas ao que esta
forma indicia, tornando possível caminhar por suas entranhas e
urdiduras através da reflexão filosófica. A objetividade aí expressa
não é o que objetivamente a obra mostra. É o que nela se oculta
como particularidade na sua forma de execução, condensando assim
a coletividade que perpassa a singularidade da sua constituição,
processo pelo qual o mundo social está mediado. A reflexão
filosófica, que, por sua vez, não é a que a obra de arte é em si, é o
elemento pelo qual é possível reconhecer o seu conteúdo de verdade:
a universalidade que dialeticamente configura a sua condição
expressiva singular como expressão social e histórica.
Quanto ao processo de mediação na obra de arte, Adorno
assim se refere a essa questão: “A obra de arte é mediatizada, quanto
à história real, pelo seu núcleo monadológico. A história pode
chamar-se o conteúdo das obras de arte. Analisar as obras artísticas
equivale a perceber a história imanente nelas armazenada” (idem,
ibid., p. 103). Porém, de acordo com a afirmativa de Adorno de que
nas obras de arte a objetividade e a verdade se interpenetram, não
se deve perder de vista que “quanto mais profunda e totalmente as
obras são formadas, tanto mais rebeldes se tornam contra a
aparência organizada e esta inflexibilidade é o fenômeno negativo da
sua verdade” (idem, ibid., p. 150). O sentido que a obra adquire
pelo seu caráter enigmático é que ele exige da obra o seu conteúdo
de verdade, ainda que não imediatamente identificável.
O que se busca a partir de tais considerações é compreender
o potencial dos signos estéticos constituintes de uma obra de arte
na formação do imaginário social. Importa entender de que forma o
processo de massificação da cultura se tem apropriado dos elementos
504 Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003
Disponível em
estéticos manipulativamente, não no sentido democrático da cultura
para as massas, como o termo talvez possa ambiguamente sugerir.
Nessa correlação de forças que se estabelece entre estética e
realidade – entre imagem e verdade social – veicula-se, no processo
de massificação cultural, uma quantidade incomensurável de
embotamentos sentimentais, com o fim último de solapar do
indivíduo a possibilidade de consciência do processo histórico no
qual se insere. A dimensão estética numa perspectiva educacional
mais ampla remete, portanto, a análises categóricas tanto dos
elementos constitutivos quanto formais e receptivos da expressão
estética no processo de formação cultural da sociedade atual.
Investigações quanto à forma de veiculação e aos usos da estética,
nessa perspectiva banalizada, tornam-se imprescindíveis para
resgatar o seu potencial de consciência como princípio educacional
na sociedade contemporânea.
Recebido e aprovado em maio de 2003.
Nota
1. Cf. Gabriel Cohn, Theodor W. Adorno: sociologia, p. 99. Theodor Adorno reporta-se à
obra Dialética do esclarecimento, escrita em conjunto com Max Horkheimer e publicada
em 1947, mencionando a utilização do termo “indústria cultural” para diferenciar o caráter
manipulativo da cultura imposta para as massas. No entendimento do autor, o termo “cultura
de massa” poderia supor um componente de expressão popular oriundo das massas e
não um processo cultural de conteúdo administrado imposto para as massas.
Referências bibliográficas
ADORNO, T.W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Trad. Maria
Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995.
ADORNO, T.W. Prismas: crítica cultural e sociedade. Trad.
Augustin Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida. São Paulo:
Ática, 1998.
ADORNO, T.W. Teoria estética. Trad. de Artur Morão. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento marxista. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1988.
Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 83, p. 495-505, agosto 2003 505
Disponível em