Currículo sem Fronteiras, v.4, n.1, pp. 5-21, Jan/Jun 2004
ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 5
PARA ALÉM DE UMA EDUCAÇÃO
DOMESTICADORA:
Um Diálogo com Noam Chomsky
Donaldo Macedo
University of Massachussets
Boston, USA
Resumo
Nessa entrevista, Noam Chomsky aborda a temática da educação e defende a idéia de
que as escolas deveriam ser espaços que envolvessem os alunos na prática da
democracia. Em uma forte crítica ao sistema educacional estadunidense, afirma que este
tem sido um espaço de doutrinação da juventude. Insiste ainda que o mito da
objetividade tem favorecido a manutenção dos grupos dominantes. Falando sobre o que
as escolas poderiam ser, declara que um bom professor sabe que a melhor maneira de
ajudar os alunos a aprender é deixá-los descobrir a verdade por eles próprios. Segundo
Chomsky, o verdadeiro conhecimento vem através da descoberta da verdade e não
através da imposição de uma verdade oficial interesses das grandes corporações.
Abstract
In this interview, Noam Chomsky deals with the issue of education and defends the idea
that schools should be spaces in which students should experience democracy. In his
strong critique of the educational system in the US, he mantains that this has been a
space of youth indoctrination. He insists that the myth of objectivity has been favoring
the insterests of the dominant groups. Speaking on how schools could be, he declares
that a good teachers knows that the best way of helping students to learn is to let them
learn the truth by themselves. According to Chomsky, true knowledge comes from
finding the truth and not from the imposition of big corporations’ oficial truth.
Donaldo Macedo – Há alguns anos, fiquei intrigado com um episódio ocorrido na Boston
Latin School. David Spritzler, um aluno de doze anos, sofreu um processo disciplinar
por se ter recusado a recitar o Juramento de Fidelidade (Pledge of AllegianceNT1),
juramento que ele considerava “uma exortação hipócrita do patriotismo” uma vez
que não existe “liberdade e justiça para todos”. O que lhe quero perguntar é por que
é que um rapaz de doze anos consegue perceber a hipocrisia do juramento de
fidelidade, e o seu professor e os administradores da escola não? Eu acho
desconcertante que professores, que pela própria natureza da sua função se
deveriam considerar intelectuais, não sejam capazes ou se recusem conscientemente
a ver o que é tão óbvio para alguém tão jovem.
Noam Chomsky – Isso não é assim tão difícil de compreender. O que você acabou de
descrever é um sinal do grau de enraizamento da doutrinação nas nossas escolas, que leva a
que unia pessoa instruída não seja capaz de entender idéias elementares capazes de serem
compreendidas por qualquer criança de doze anos.
Donaldo Macedo: Eu acho desconcertante que um professor altamente instruído e um
diretor de uma escola estejam dispostos a sacrificar o conteúdo do Juramento de
Fidelidade para imporem obediência, ao exigirem que um aluno recite o Juramento
de Fidelidade.
Noam Chomsky – Eu não considero isso nada desconcertante. Na realidade, o que
aconteceu com David Spritzler é o que se espera das escolas, que são instituições dedicadas
à doutrinação e à imposição de obediência. Longe de criarem pensadores independentes, ao
longo da história as escolas sempre tiveram um papel institucional num sistema de controle
e coerção. E, uma vez convenientemente educado, o indivíduo foi socializado de um modo
que dá suporte à estrutura de poder que, por seu lado, o recompensa generosamente.
Vejamos o exemplo de Harvard. Aí os estudantes não se limitam a aprender matemática.
Aprendem também o que é esperado de um graduado de Harvard no que diz respeito ao seu
comportamento e ao tipo de perguntas que nunca se devem fazer. Aprendem as sutilezas
das recepções, as formas de se vestir mais adequadas e como falar com sotaque de Harvard.
Donaldo Macedo – E também de como se mover no seio de uma classe particular e
descobrir as metas, os objetivos e os interesses da classe dominante.
Noam Chomsky – Sim. Neste caso existe uma diferença fundamental entre Harvard e o
MIT. Apesar de se poder caracterizar o MIT seguramente como sendo mais de direita, é
uma instituição muito mais aberta que Harvard. Existe um adágio sobre Cambridge que
retrata essa diferença: Harvard treina pessoas para governar o mundo, o MIT treina as que o
fazem funcionar. O resultado é que a preocupação de controle ideológico é muito menor
no MIT, havendo mais espaço para o pensamento independente. A minha situação nessa
instituição é prova do que acabei de dizer. Eu nunca senti qualquer interferência no meu
trabalho ou ativismo político. Dito isto, eu não considero que o MIT seja um trampolim
para o ativismo político. Ainda está subjugado a um papel institucional de evitar uma boa
parte da verdade acerca do mundo e da sociedade. Caso contrário, se ensinasse a verdade,
não sobreviveria muito tempo.
Como não ensinam a verdade sobre o mundo, as escolas têm que martelar na cabeça
dos estudantes até lhes impingir a propaganda sobre a democracia. Se as escolas fossem
realmente democráticas, não seria necessário bombardear os estudantes com banalidades
acerca da democracia. Estes agiriam e comportar-se-iam de uma forma simplesmente
democrática, e nós sabemos que isso não acontece. Habitualmente, quanto maior é a
necessidade de falar sobre os ideais da democracia, menos democrático é o sistema.
Este é um dado bem conhecido pelos políticos e por vezes estes nem sequer se
esforçam por escondê-lo. A Comissão TrilateralNT2 referiu-se às escolas como “instituições”
responsáveis pela “doutrinação dos jovens”. A doutrinação é necessária porque as escolas
são, de um modo geral, concebidas para apoiar os interesses do segmento dominante da
sociedade, das pessoas detentoras da riqueza e do poder. Numa fase inicial da educação, as
pessoas são socializadas de modo a compreenderem a necessidade de apoiar a estrutura do
poder, com as corporações em primeiro plano – a classe empresarial. A lição aprendida na
socialização através da educação é que se não se apoiar os interesses dos detentores da
riqueza e do poder, não se sobrevive por muito tempo. É-se excluído do sistema ou
marginalizado. E as escolas são bem sucedidas na “doutrinação da juventude” – para usar
as palavras da Comissão Trilateral – ao operarem num enquadramento propagandístico que
consegue distorcer ou reprimir idéias e informações indesejadas.
Donaldo Macedo – Como é possível que esses intelectuais que operam num
enquadramento propagandístico consigam escapar incólumes com a sua
cumplicidade para com as falsidades que disseminam a serviço dos poderosos
interesses?
Noam Chomsky – Eles não se escapam com nada. Na realidade, estão apenas a prestar um
serviço que as instituições para as quais trabalham esperam deles. E eles, voluntariamente,
talvez inconscientemente, preenchem os requisitos do sistema industrial. É como se
contratasse um carpinteiro e, depois de ele concluir o trabalho para que foi contratado, lhe
perguntasse como é que ele se tinha safado com aquilo. Ele fez o que dele era esperado.
Bem, os intelectuais prestam um serviço semelhante. Fazem o que deles é esperado ao
oferecerem uma descrição razoavelmente exata da realidade que se adéqua aos interesses da
pessoas que detêm a riqueza e o poder – os donos das instituições a que chamamos escolas
e, de fato, da sociedade de um modo geral.
Entrevista com NOAM CHOMSKY
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Donaldo Macedo – É claro que historicamente os intelectuais têm tido um papel inglório
de apoio ao sistema doutrinal. Dada a postura pouco honrosa que assumem,
poderemos considerá-los intelectuais no verdadeiro sentido da palavra? Você referese
com alguma freqüência a alguns professores de Harvard como “comissários”. Eu
também considero o tempo mais apropriado que intelectual, dada a sua cumplicidade
com a estrutura de poder, e dos seus papéis funcionais de apoio a “valores
civilizacionais” que em muitos casos deram origem a exatamente o oposto: miséria
humana, genocídio, escravatura e exploração em massa das populações.
Noam Chomsky – Do ponto de vista histórico, tem sido quase exatamente esse o caso.
Recuando no tempo até à época da Bíblia, os intelectuais que mais tarde foram chamados
“falsos profetas” trabalhavam para os interesses específicos de quem estava no poder.
Sabemos que existiam intelectuais dissidentes naquela época, e que esses tinham uma visão
alternativa do mundo. Foram mais tarde chamados “profetas” – uma tradução dúbia de um
mundo obscuro. Esses intelectuais foram marginalizados, torturados ou exilados. As coisas
não mudaram muito na nossa época. Os intelectuais dissidentes continuam marginalizados
pela maioria das sociedades e, em lugares como El Salvador, são simplesmente chacinados.
Foi isso que aconteceu com arcebispo Romero e os seis intelectuais jesuítas executados por
tropas de elite treinadas [nos EUA], armadas e suportadas pelos nossos impostos. Um
jesuíta salvadorenho comentou acertadamente no seu diário que no seu país Václav Havel
(antigo prisioneiro político que se tomou presidente da Tchecoslováquia), por exemplo, não
teria sido preso; teria sido esquartejado e abandonado à beira da estrada. Václav Havel, que
se tornou no dissidente preferido do Ocidente, recompensou generosamente os seus
apoiadores no Ocidente ao dirigir-se ao Congresso dos EUA algumas semanas após o
assassinato dos seis jesuítas em El Salvador. Em vez de demonstrar solidariedade para com
os camaradas dissidentes em El Salvador, louvou e enalteceu o Congresso, a quem chamou
de “defensores da liberdade”. O escândalo é tão óbvio que não precisa de comentário.
Um simples teste mostrará como este escândalo é extraordinário. Consideremos, por
exemplo, o seguinte caso imaginário: um comunista negro americano vai à (então) União
Soviética, pouco tempo depois de seis eminentes intelectuais tchecos terem sido
assassinados por forças de segurança treinadas e armadas pelos russos. Ele dirige-se à
Duma, elogiando os deputados enquanto “defensores da liberdade”. A reação dos
intelectuais e políticos aqui nos Estados Unidos seria rápida e previsível. Ele seria
denunciado por apoiar um regime assassino. Os intelectuais americanos devia perguntar-se
por que razão reagiram com tal êxtase ao incrível desempenho de Havel, que é bastante
comparável a esta situação imaginária.
Quantos intelectuais americanos já leram alguma coisa sobre os intelectuais da
América Central assassinados por exércitos sancionados pelos EUA? Ou ouvido falar de
Dom Hélder Câmara – o bispo brasileiro defensor das causas dos pobres do Brasil? O fato
de que a maioria deles teria dificuldade em dizer os nomes dos dissidentes das tiranias
brutais da América Latina – e de outros locais – apoiados por nós, e cujas “forças da
ordem” são treinadas por nós, oferece um comentário interessante à nossa cultura
intelectual. Os fatos inconvenientes ao sistema doutrinado são sumariamente ignorados
como se não existissem. São simplesmente suprimidos.
Donaldo Macedo – Esta construção social do não ver caracteriza esses intelectuais,
descritos por Paulo Freire como educadores que reclamam uma postura científica e
que “poderiamtentar esconder-se no que [eles] consideram a neutralidade da
investigação científica, indiferentes ao modo como as [suas] invenções são
utilizadas, desinteressados até em considerar para quem ou para que interesses estão
a trabalhar”1. Segundo Freire, em nome da objetividade, esses intelectuais
“poderiam tratar a sociedade em estudo como se [eles próprios] não fizessem parte
dela. Na [sua] celebrada neutralidade, [eles poderiam] abordar esse mundo como se
usassem `luvas e máscaras' para não contaminarem nem serem contaminados por
ela”2. Eu acrescentaria que esses intelectuais não só usam “luvas e máscaras”, mas
também viseiras, para evitarem ver o óbvio.
Noam Chomsky – Não sei se concordo com esse ataque e crítica pós-moderna à
objetividade. A objetividade não é algo que possamos rejeitar. Pelo contrário, deveríamos
trabalhar muito para a abarcar na nossa procura da verdade.
Donaldo Macedo – Não discordo. A minha crítica da objetividade não pretende rejeitá-la.
O que deve ser questionado é a capa de objetividade utilizada por muitos intelectuais
para evitar incorporar nas suas análises fatores inconvenientes e que possam expor a
sua cumplicidade na supressão da verdade ao serviço da ideologia dominante.
Noam Chomsky – Sim. A pretensão da objetividade enquanto meio de distorção e
desinformação a serviço do sistema doutrinal deve ser firmemente condenada. Essa atitude
intelectual é muito mais facilmente mantida nas ciências sociais, porque os
constrangimentos impostos aos investigadores pelo mundo exterior são muito mais fracos.
A compreensão é muito mais superficial e os problemas a analisar são muito mais obscuros
e complexos. O resultado é que é muito mais fácil ignorar simplesmente coisas que não se
quer ouvir. Existe uma diferença marcada entre as ciências naturais e as ciências sociais.
Nas ciências naturais, os fatos da natureza não deixam o investigador ignorar com tanta
facilidade coisas que entrem em conflito com crenças favorecidas e é mais difícil perpetuar
erros. Uma vez que nas ciências naturais as experiências são replicadas, é mais fácil expor
os erros. Existe uma disciplina interna que orienta as diligências intelectuais. Ainda assim,
não existe uma garantia clara de que mesmo a mais séria pesquisa conduza à verdade.
Regressemos ao ponto inicial: as escolas evitam verdades importantes. É da
responsabilidade intelectual dos professores – e de qualquer indivíduo honesto – procurar
dizer a verdade. Isto não é, certamente, controverso. É um imperativo moral procurar e
dizer a verdade, na medida das possibilidades, acerca de coisas relevantes, ao público certo.
É uma perda de tempo dizer a verdade ao poder, no sentido literal das palavras, e o esforço
de o fazer pode freqüentemente ser uma forma de auto-complacência. A meu ver, é uma
perda de tempo e um empreendimento inútil dizer a verdade a pessoas como Henry
Kissinger ou o Presidente do Conselho de Administração da AT&TNT3, ou outros que
exerçam poder em instituições com políticas de coerção – a maioria deles já conhecem
estas verdades. Gostaria de justificar o que acabei de dizer. Se e quando as pessoas que
exercem o poder nas respectivas funções institucionais se dissociam do ambiente
institucional e se tornam seres humanos, agentes morais, nessa altura podem juntar-se ao
resto das pessoas. Mas não vale a pena dialogar com eles no seu papel de indivíduos
detentores de poder. É um desperdício de tempo. Vale tanto a pena dizer a verdade ao poder
quanto ao pior e mais criminoso dos tiranos, que também será um ser humano,
independentemente de quão terríveis sejam as suas ações. Dizer a verdade ao poder não é
uma vocação particularmente honrosa.
Deve-se procurar um público que interesse. Para os professores, esse público são os
estudantes. Estes não devem ser vistos como uma mera audiência, mas como fazendo parte
de uma comunidade de interesse partilhado, na qual esperamos poder participar de um
modo construtivo. Não devemos falar para, mas com. Isso é algo que já se tornou uma
segunda natureza em qualquer bom professor, e também o deveria ser em qualquer escritor
ou intelectual. Um bom professor sabe que a melhor maneira de ajudar os alunos a aprender
é deixá-los descobrir a verdade por eles próprios. Os estudantes não aprendem por mera
transferência de conhecimento através da memorização mecânica e posterior regurgitação.
O verdadeiro conhecimento vem através da descoberta da verdade e não através da
imposição de uma verdade oficial. Isso nunca conduz ao desenvolvimento do pensamento
crítico e independente. Todos os professores têm a obrigação de ajudar os estudantes a
descobrir a verdade e não suprimir informação e conhecimentos que possam ser
embaraçosos para as pessoas ricas e poderosas que criam, concebem e fazem as políticas
das escolas.
Vejamos mais de perto o que significa ensinar a verdade e as pessoas distinguirem
mentiras de verdades. Eu acho que não é preciso mais do que bom senso, o mesmo bom
senso que nos permite adotar uma posição crítica perante os sistemas de propaganda das
nações que consideramos nossas inimigas. Já sugeri antes que os eminentes intelectuais
estadunidenses não seriam capazes de nomear nenhum dissidente conhecido das tiranias da
esfera do nosso controle, por exemplo El Salvador. Contudo, esses mesmos intelectuais não
teriam qualquer dificuldade em fornecer uma longa lista de dissidentes da antiga União
Soviética. Também não teriam qualquer problema em distinguir mentiras da verdade e em
reconhecer as distorções e perversões que são usadas para proteger a população da verdade
nos regimes inimigos. As competências críticas que eles utilizam para desmascarar as
falsidades propagadas nas nações a que chamam “hostis” desaparecem quando se trata de
criticar o nosso próprio governo e as tiranias por nós suportadas. As classes instruídas têm
essencialmente apoiado o aparelho de propaganda ao longo da história, e quando desvios da
doutrina são reprimidos ou marginalizados, a máquina propagandística tem geralmente
grande sucesso. Isso foi bem compreendido por Hitler e por Stalin, e até hoje tanto
sociedades abertas como fechadas procuram e recompensam a cumplicidade da classe
instruída.
A classe instruída tem sido denominada uma “classe especializada”, um pequeno grupo
de pessoas que analisam, executam, tomam decisões e gerem as coisas nos sistemas
político, econômico e ideológico. A classe especializada é geralmente composta por uma
pequena percentagem da população; eles têm de ser protegidos do grosso da população, a
quem Walter Lippmann chamou de “rebanho desnorteado”. Esta classe especializada leva a
cabo as “funções executivas”, o que significa que são eles que pensam, planejam e
percebem os “interesses comuns”, que para eles são os interesses da classe empresarial. A
grande maioria das pessoas, o “rebanho desnorteado”, devem funcionar na nossa
democracia como “espectadores”, não como “participantes na ação”, de acordo com as
crenças liberais democráticas que Lippmann articula com clareza. Na nossa democracia, de
vez em quando é permitido aos membros do “rebanho desnorteado” participar na aprovação
de um líder através daquilo a que chamamos “eleição”. Mas, uma vez confirmado um ou
outro membro da classe especializada, devem retirar-se e voltar a ser espectadores.
Quando o “rebanho desnorteado” tenta ser mais do que simples espectadores, quando
as pessoas tentam tomar-se participantes nas ações democráticas, a classe especializada
reage àquilo que chama “crise de democracia”. E por isso que existiu tanto ódio entre as
elites dos anos 1960, quando grupos de pessoas que historicamente sempre foram
marginalizadas se começaram a organizar e a interferir com as políticas da classe
especializada, em particular na guerra do Vietnã, mas também na política social interna.
Uma das formas de controlar o “rebanho desnorteado” é seguir a concepção da
Comissão Trilateral das escolas enquanto instituições responsáveis pela “doutrinação dos
jovens”. Os membros do “rebanho desnorteado” devem ser profundamente doutrinados nos
valores e interesses corporativos privados e controlados pelo estado. Aqueles que são bem
sucedidos em instruir-se nos valores da ideologia dominante e que provam a sua lealdade
ao sistema doutrinal podem tornar-se parte da classe especializada. O resto do “rebanho
desnorteado” deve ser mantido na linha, longe de problemas e mantendo-se sempre, quanto
muito, espectadores da ação e distraídos das verdadeiras questões que interessam. A classe
instruída considera-os demasiado estúpidos para gerirem os seus próprios assuntos, e por
isso precisam da classe especializada para se assegurarem de que não terão a oportunidade
de agir com base nos seus “equívocos”. Segundo a classe especializada, os 70 por cento das
pessoas que consideram que a Guerra do Vietnã foi moralmente errada devem ser
protegidos dos seus “equívocos” ao oporem-se à guerra: eles devem acreditar na opinião
oficial de que a Guerra do Vietnã foi apenas um erro.
Para proteger o “rebanho desnorteado” de si próprio e dos seus “equívocos”, numa
sociedade aberta a classe especializada precisa de se virar cada vez mais para a técnica da
propaganda, para a qual se usa o eufemismo “relações públicas”. Por outro lado, em estados
totalitários o “rebanho desnorteado” é mantido no lugar por um martelo que paira sobre as
suas cabeças, e se alguém se desvia, tem sua cabeça esmagada. Uma sociedade democrática
não se pode apoiar na força bruta para controlar a população. Por isso, é preciso confiar
mais na propaganda como forma de controlar a mente pública. A classe instruída toma-se
indispensável na diligência de controle da mente e as escolas têm um papel importante
neste processo.
Donaldo Macedo – As suas declarações sugerem, e eu concordo, que nas sociedades
abertas a censura está, em grande parte, integrada no tecido do qual depende a
propaganda e a sua tentativa de “controlar a mente pública”. Porém, na minha
perspectiva, a censura numa sociedade aberta difere substancialmente da forma de
censura exercida em sociedades totalitárias. O que eu tenho observado nos Estados
Unidos é que a censura não só se manifesta de um modo diferente, mas também que
depende de uma forma de auto-censura. Quais são os papéis dos meios de
comunicação social e da educação neste processo?
Noam Chomsky – Aquilo que você chamou de auto-censura começa em muito tenra idade,
através de um processo de socialização que é também uma forma de doutrinação que
funciona contra o pensamento independente, em favor da obediência. As escolas funcionam
como um mecanismo para essa socialização. O objetivo é evitar que as pessoas façam as
perguntas que interessam acerca de questões importantes que as afetam diretamente, a elas
e a outros. Nas escolas não se aprende apenas conteúdos. Como já mencionei, se quiser
tornar-se num professor de matemática, não basta aprender muita matemática.
Adicionalmente é preciso aprender como se comportar, como se vestir de um modo
apropriado, que tipos de questões podem ser levantadas, como encaixar (ou seja, como se
adaptar), etc. Se mostrar demasiada independência e questionar o código da sua profissão
com demasiada freqüência, o mais provável é ser excluído do sistema de privilégios.
Assim, rapidamente aprende que, para ter sucesso, tem que servir os interesses do sistema
doutrinal. Tem que ficar calado e instilar nos seus estudantes as crenças e doutrinas que
servirão os interesses daqueles que detêm o verdadeiro poder. A classe empresarial e os
seus interesses privados são representados pelo elo estado-empresa. Mas as escolas estão
longe de ser o único instrumento de doutrinação. Outras instituições se conjugam para
reforçar o processo de doutrinação. Vejamos aquilo que nos impingem pela televisão.
Pedem-nos para assistirmos a um conjunto de programas vazios, concebidos como
entretenimento, mas desenhados para desviar a atenção das pessoas dos seus verdadeiros
problemas ou de identificarem as fontes dos seus problemas. Assim, esses programas
vazios socializam o espectador, para que se torne num consumidor passivo. Uma das
formas de gerir uma vida frustrada é comprar cada vez mais coisas. Os programas exploram
as necessidades emocionais das pessoas e mantêm-nas desligadas das necessidades dos
outros. A medida que os espaços públicos se desintegram, as escolas e os poucos espaços
públicos que restam trabalham para tornar as pessoas boas consumidoras.
Donaldo Macedo: Isso ajusta-se à super glorificação do individualismo.
Noam Chomsky – Não concordo. Não o vejo como uma forma de individualismo. O
individualismo, no seu melhor, exige alguma forma de responsabilidade pelas próprias
ações. Esta forma vazia de entretenimento encoraja as pessoas a submeter-se e deixar-se
guiar essencialmente pela emoção e pelo impulso. O impulso é consumir mais, ser um bom
consumidor. Nesse sentido, os meios de comunicação social, as escolas e a cultura popular
dividem-se entre aqueles que possuem racionalidade, e são os que planejam e tomam as
decisões na sociedade, e o resto das pessoas. E para terem sucesso, aqueles que possuem
racionalidade e se juntam à classe especializada têm que criar “ilusões necessárias” e
“maniqueísmos emocionalmente potentes”, de acordo com as palavras de Reinhold
Niehbur, para proteger o “rebanho desnorteado” – o simplório ingênuo – da importunação
da complexidade dos problemas reais, que de qualquer modo não conseguiriam resolver. O
objetivo é manter as pessoas isoladas das verdadeiras questões e umas das outras. Qualquer
tentativa de organizar ou estabelecer ligações com o coletivo tem de ser esmagada. Tal
como nos estados totalitários. a censura é muito real nas sociedades abertas, apesar de
assumir formas diferentes. Perguntas que são ofensivas ou embaraçosas para o sistema
doutrinal são interditadas. As informações inconvenientes são suprimidas. Não é preciso ir
muito longe para se chegar a esta conclusão, basta analisar de uma forma honesta aquilo
que é noticiado nos meios de comunicação social e aquilo que é deixado de fora; tentar
entender honestamente qual a informação permitida nas escolas e qual a proibida. Qualquer
pessoa com uma inteligência média consegue perceber como os meios de comunicação
social manipulam e censuram a informação que consideram inconveniente. Pode dar algum
trabalho descobrir as distorções e a ocultação da informação. Mas a única coisa que é
preciso é o desejo de conhecer a verdade.
Não existe razão para os intelectuais não conseguirem tomar a mesma posição perante
os nossos protetorados na América Latina que tomam perante os domínios inimigos. Para
isso basta a vontade de utilizar a mesma inteligência e bom senso que utilizam ao analisar e
dissecar as atrocidades cometidas pelos nossos inimigos. Se as escolas estivessem ao
serviço do público em geral, estariam fornecendo às pessoas técnicas de auto-defesa, mas
isso significaria ensinar a verdade acerca do mundo e da sociedade. Iriam dedicar-se com
mais energia e aplicação exatamente ao tipo de coisas que estamos discutindo, de modo que
as pessoas que cresceram numa sociedade aberta e democrática desenvolveriam técnicas de
auto-defesa, não só contra o aparelho propagandístico das sociedades totalitárias
controladas pelo Estado, mas também contra o sistema privatizado de propaganda, que
inclui as escolas, os meios de comunicação social, a imprensa que determina o que está na
ordem do dia e as revistas intelectuais, que essencialmente controlam o empreendimento
educativo. Aqueles que exercem o controle sobre o aparelho educativo deveriam ser
referidos como uma classe de “comissários”. Comissários são os intelectuais que trabalham
em primeira linha para a reprodução, legitimação e manutenção da ordem social dominante,
da qual colhem benefícios. Os verdadeiros intelectuais têm a obrigação de buscar e dizer a
verdade acerca de coisas que são importantes. coisas significativas. Este ponto não se
perdeu junto dos intelectuais do Ocidente, que não têm qualquer problema em aplicar
princípios morais elementares em casos que envolvam inimigos oficiais.
Donaldo Macedo: Isso é uma forma de moralismo seletivo. Participar nesse moralismo
seletivo também fornece a esses comissários a base racional para justificar a sua
cumplicidade com aquilo a que Theodor Adorno chamou “recusa teimosa de ver”.
Eu vivi em duas ditaduras muito diferentes, a de António Salazar, em Portugal, e a de
Francisco Franco, na Espanha, e a censura nesses regimes totalitários era crua,
inequívoca e policiada. A experiência que tenho da censura na democracia dos EUA
é de que esta é muito mais difusa e freqüentemente exercida de uma forma subliminar
ou através dos colegas (incluindo os estudantes) no contexto do trabalho.
Por falar em democracia, não é irônico que nos Estados Unidos – um país que se
preza por ser a primeira e mais democrática sociedade do Primeiro Mundo – as
escolas continuem a ser extremamente antidemocráticas? Elas continuam
antidemocráticas não só nas suas estruturas administrativas (por exemplo, os
diretores são nomeados e não eleitos), mas também enquanto locais que reproduzem
a ideologia dominante, que por seu lado desencoraja o pensamento crítico e
independente. Dada a natureza antidemocrática das escolas, como pode a educação
estimular o pensamento crítico em termos de criatividade, curiosidade e
necessidades dos estudantes?
Noam Chomsky – Existiam alternativas ao atual sistema escolar antidemocrático que
acabou de mencionar. Por exemplo, eu tive a sorte de estudar numa escola baseada em
ideais democráticos, onde a influência das idéias de John Dewey se sentiam fortemente e
onde as crianças eram encorajadas a estudar e investigar enquanto processo de descoberta
da verdade por elas próprias. Qualquer escola que tenha de impor o ensino da democracia já
é suspeita. Quanto menos democrática é uma escola, mais necessidade tem de ensinar
idéias democráticas. Se as escolas fossem realmente democráticas, no sentido de
oferecerem às crianças as oportunidades de terem a experiência da democracia na prática,
não sentiriam a necessidade de as doutrinar com lugares-comuns sobre a democracia. De
novo, eu me sinto um felizardo por a minha experiência escolar não se ter baseado na
memorização de falsidades sobre quão maravilhosa era a nossa democracia. A influência de
Dewey não se estendeu a todas as escolas, apesar de ele ter sido uma figura eminente do
liberalismo norte-americano e um dos principais filósofos do século XX.
Também me lembro que, quando moço, fui conselheiro num campo de férias, e
presenciei com freqüência o sucesso de um processo de doutrinação semelhante ao da
recitação do Juramento de Fidelidade que você descreveu há pouco. Lembro-me de ver
crianças emocionando-se muito, a ponto de chorarem, ao recitarem as canções patrióticas
hebraicas que nem sequer compreendiam. Algumas das crianças diziam as palavras
completamente erradas, mas isso não reduzia o seu estado emocional. O verdadeiro ensino
democrático não gira em torno da instilação do patriotismo ou da memorização mecânica
dos ideais da democracia. Nós sabemos que os estudantes não aprendem dessa maneira. A
verdadeira aprendizagem ocorre quando os estudantes são convidados a descobrir por eles
próprios a natureza da democracia e o seu funcionamento.
A melhor maneira de descobrir como funciona uma democracia funcional é praticá-la.
E isso as escolas não fazem muito bem. Uma boa medida do funcionamento de uma
democracia nas escolas e na sociedade é o grau de aproximação entre a teoria e a realidade,
e é sabido que tanto nas escolas como na sociedade existe um grande abismo entre as duas.
Em teoria, numa democracia todos os indivíduos podem participar em decisões que têm a
ver com as suas vidas, determinando como são obtidos e utilizados os recursos públicos,
que política externa a sociedade deveria seguir e assim por diante. Um teste simples
mostrará o abismo entre a teoria, que diz que todos os indivíduos podem participar nas
decisões que envolvem as suas vidas, e a prática, em que o poder concentrado pelo governo
funciona como um limitador da capacidade dos indivíduos e grupos de gerirem os seus
próprios assuntos ou, por exemplo, de determinarem a forma da política externa que
querem adotar.
Tomemos os presentes bombardeio em Kosovo e no Iraque. A situação em Kosovo
antes do bombardeio de 24 de Março era, no mínimo, terrível. No dia 24 de Março
começou o bombardeio e em poucos dias apareceram milhares de refugiados vindos de
Kosovo e houve um aumento dramático de estupros, matanças em massa e tortura – uma
conseqüência direta e previsível do bombardeio que foi executado com a declarada intenção
de ser um esforço humanitário para proteger a população de etnia albanesa. Bom, não é
preciso um grande esforço para perceber que uma situação que era terrível se tornou
catastrófica depois do bombardeio, que uma situação horrível em Kosovo acabou ganhando
proporções catastróficas depois da “intervenção humanitária” da OTAN. Seguindo a
Declaração Universal de Direitos Humanos, a OTAN reclamou o direito a uma
“intervenção humanitária” para por fim à limpeza étnica de albaneses. Como podemos ver,
os bombardeios da OTAN conduziram diretamente a um aumento radical na limpeza étnica
e da carnificina em Kosovo: conduziram a um forte aumento dos assassinatos, estupros e
tortura de pessoas de etnia albanesa, o que não constitui grande surpresa. De fato, o
comandante da OTAN, General Wesley Clark, informou imediatamente à imprensa que
este seria um efeito “inteiramente previsível” do bombardeio.
Se fôssemos aplicar a mesma linha de argumentação que justificou a “intervenção
humanitária” em Kosovo, a OTAN deveria bombardear outros países, por exemplo a
Colômbia, e também um dos seus membros, a Turquia. De acordo com estimativas do
Departamento de Estado dos EUA, a taxa anual de assassinatos políticos praticados pelo
Estado e pelo respectivo aparelho paramilitar na Colômbia está quase no mesmo nível que
em Kosovo antes dos bombardeios da OTAN, e há aproximadamente um milhão de
refugiados fugindo dessas atrocidades. Com o aumento da violência nos anos 1990, a
Colômbia se tornou o principal destinatário de armas e treino estadunidenses no hemisfério
ocidental e essa assistência está aumentando sob o pretexto de uma “guerra contra a droga”,
rejeitado por todos os observadores sérios. A administração Clinton foi particularmente
generosa nos elogios ao presidente da Colômbia, César Gaviria, cuja administração foi
responsável por “chocantes níveis de violência”, de acordo com organizações de defesa dos
direitos humanos.
No caso da Turquia, a repressão dos curdos nos anos 1990 ultrapassa largamente a
escala de Kosovo antes dos bombardeios da OTAN. Esta atingiu o seu auge em meados da
década de 1990: um índice é a fuga de mais de um milhão de curdos da província para a
capital oficial curda, Diyarbakir, entre 1990 e 1994, à medida que o exército turco
devastava o campo. Em 1994 foram estabelecidos dois recordes: foi o “ano de pior
repressão nas províncias curdas” da Turquia, segundo relatos in loco de Jonathan Randal, e
o ano em que a Turquia se tomou o “maior importador individual de material de guerra
estadunidense e, assim, o maior comprador de armas do mundo”. Quando grupos de defesa
dos direitos humanos expuseram a utilização de jatos estadunidenses pela Turquia para
bombardear aldeias, a administração Clinton usou subterfúgios para contornar leis que
exigiam a suspensão da entrega de armamento, tal como fazia na Indonésia e em outros
locais. De novo, se seguíssemos a linha de argumentação da Declaração Universal de
Direitos Humanos, citada pela OTAN como justificação para os bombardeios em Kosovo, a
OTAN teria justificativas mais que suficientes para bombardear Washington.
Vejamos o caso do Laos. Durante muitos anos, milhares de pessoas, na sua maioria
crianças e camponeses pobres, foram mortas nas planícies de Jarros, no norte de Laos,
aparentemente o cenário do mais violento bombardeio de alvos civis na história – e talvez o
mais cruel. O violento ataque de Washington a uma sociedade de camponeses pobres não
tem nada a ver com as suas guerras na região. O pior período começou em 1968, quando
Washington foi obrigado a iniciar negociações (sob pressões populares e econômicas),
interrompendo o bombardeio sistemático do Vietnã do Norte. Henry Kissinger e Richard
Nixon decidiram então desviar os aviões para o bombardeio do Laos e do Camboja. As
mortes deveram-se às “bombies”, pequenas armas anti-pessoais muito piores que minas
terrestres: foram concebidas especificamente para matar pessoas sem afetaram caminhões,
edifícios etc. A planície ficou cheia de centenas de milhões destes dispositivos assassinos
que, de acordo com o fabricante, Honeywell, apresentam uma taxa de falha de detonação de
20 a 30 por cento. Estes números sugerem um controle de qualidade notavelmente fraco ou
uma política de assassinato de civis de ação retardada. As bombies foram apenas uma
fração da tecnologia utilizada, que incluiu mísseis avançados que penetravam em cavernas
onde famílias procuravam abrigo.
Atualmente, a estimativa é de centenas de baixas anuais provocadas por bombies,
podendo atingir “uma taxa anual de 20.000 acidentes no país”, resultando em morte, em
mais da metade dos casos, segundo o relato do veterano correspondente na Ásia, Barry
Wain, da edição asiática do Wall Street Journal. Uma estimativa conservadora é, então, que
a crise apenas deste ano que passou é aproximadamente comparável a Kosovo antes dos
bombardeios. Contudo, as mortes estão muito mais concentradas entra as crianças – mais
de metade, segundo as análises publicadas pelo Comitê Central Menonita que trabalha na
zona desde 1977 para reduzir as contínuas atrocidades.
Os meios de comunicação social dos Estados Unidos aplaudiram a intervenção da
OTAN em Kosovo para impedir a limpeza étnica dos albaneses, apesar de o bombardeio ter
aumentado tragicamente a limpeza étnica e outras atrocidades. Mas no caso de Laos, em
que somos diretamente responsáveis pelas mortes, a reação dos EUA foi não fazer nada. E
os meios de comunicação social e os comentaristas mantiveram-se calados, respeitando as
normas segundo as quais a guerra no Laos foi considerada uma “guerra secreta” – ou seja,
bem conhecida, mas abafada, como foi o caso do Camboja a partir de março de 1969. O
grau de auto-censura foi extraordinário nessa altura, tal como é atualmente. A relevância
deste chocante exemplo é óbvia. Enquanto os meios de comunicação social dos EUA
exultaram quando o Tribunal Internacional indiciou Slobodan Milosevic por crimes contra
a humanidade, Kissinger, um dos arquitetos da carnificina no Laos, continua livre e é
celebrado como “perito” cujo “ponto de vista” sobre os bombardeamentos em Kosovo era
ansiosamente buscado pelos meios de comunicação social.
No caso do Iraque abundam as atrocidades, com civis iraquianos sendo chacinados por
uma forma particularmente maliciosa de guerra biológica. Em 1996, quando questionada
sobre a morte de meio milhão de crianças iraquianas em cinco anos, a secretária de estado
Madeleine Albright comentou na Televisão Pública dos Estados Unidos que “nós achamos
que o preço vale a pena”. De acordo com estimativas atuais, ainda são mortas cerca de
4.000 crianças por mês e o preço “ainda vale a pena”.
Uma análise mais cuidadosa da Guerra do Golfo revela os mesmos princípios
condutores da “intervenção humanitária” ou da intervenção para salvaguardar
“democracias” dos EUA em todo o mundo. Os meios de comunicação social e as classes
instruídas repetem obedientemente as palavras do presidente George Bush de que “a
posição da América é a mesma que sempre foi – contra a agressão, contra aqueles que
utilizam a força para se sobreporem à lei”, apesar de alguns meses antes ele ter violado os
princípios da América “contra a agressão, contra aqueles que utilizariam a força para se
sobreporem à lei” ao invadir o Panamá. O presidente Bush foi o único chefe de estado a ser
condenado pelo Tribunal Mundial pelo “uso indevido de força” – na guerra dos EUA contra
a Nicarágua. A reivindicação de Bush de “alto princípio” foi uma anedota, já que os
Estados Unidos não defenderam nenhum alto princípio no Golfo, o mesmo valendo para
qualquer estado envolvido. A resposta sem precedentes a Saddam Hussein não se deveu à
sua agressão brutal – foi porque ele pisou os calos errados, tal como Manuel Noriega fizera
alguns anos antes. Ambos eram rufias que já tinham sido amigos do presidente Bush.
Saddam Hussein é um assassino sem escrúpulos – como era antes da Guerra do Golfo,
quando era nosso amigo e um dos parceiros comerciais preferidos. A sua invasão do
Kuwait foi certamente uma atrocidade, mas não chegou aos pés das atrocidades cometidas
com o apoio dos EUA e chegou ao mesmo nível de muitos crimes semelhantes levados a
cabo pelos Estados Unidos e os seus aliados.
Por exemplo, a invasão e anexação de Timor-Leste pela Indonésia quase atingiu
proporções de genocídio: um quarto da população (700.000) foi morta, um massacre que
excedeu o de Pol Plot, comparativamente à população, no mesmo número de anos. Tanto os
Estados Unidos como os seus aliados apoiaram estas atrocidades. O ministro dos negócios
estrangeiros australiano justificou o seu consentimento à invasão e anexação de Timor-
Leste dizendo simplesmente que “o mundo é um lugar bastante injusto, cheio de exemplos
de aquisição pela força”. Contudo, quando o Iraque invadiu o Kuwait, o seu governo
denunciou a invasão com uma declaração alto e em bom tom de que os “países grandes não
podem invadir vizinhos pequenos e ficar incólumes”. As verdadeiras preocupações da
política dos EUA no Golfo eram de que as incomparáveis reservas energéticas do Médio
Oriente se mantivessem sob o nosso controle e que os enormes lucros por elas produzidos
ajudassem a suportar as economias dos Estados Unidos e do seu cliente britânico.
Donaldo Macedo: É realmente uma constatação triste, a de que apesar de os fatos que
agora relatou serem tão óbvios, a classe instruída dos EUA, à exceção de uma
pequena minoria, ter sido incapaz de estabelecer as ligações históricas necessárias
para desenvolver uma compreensão rigorosa do mundo. O vice-presidente Dan
Quayle teve uma leitura correta da Guerra do Golfo, ainda que não
intencionalmente, ao descrevê-la como “uma vitória avassaladora para as forças
agressoras”. O presidente Bush foi apanhado num lapso freudiano semelhante
durante uma entrevista conduzida pela âncora do canal de televisão de Boston,
Channel 5, Natalie Jacobson. Ao referir-se à Guerra do Golfo, Bush disse
“Cumprimos a nossa agressão” em vez do certamente pretendido “Cumprimos a
nossa missão”. As palavras aparentemente trocadas de Bush e de Quayle põe a nu a
pedagogia das grandes mentiras. As suas declarações capturam com precisão a
essência da hipótese colocada por José Ortega y Gasset, de que se aquilo a que
chamamos a nossa civilização fosse “deixada em paz” e deixada à mercê de
comissários como Henry Kissinger daria origem ao renascimento do primitivismo e
do barbarismo.
Os seus exemplos do barbarismo no Kosovo, Turquia, Colômbia e Laos apontam
para o barbarismo da civilização. Em muitos casos, o alto nível de sofisticação
técnica atingido pela nossa assim chamada civilização tem sido utilizado das formas
mais bárbaras, como foi provado pela utilização das câmaras de gás nos judeus e os
bombardeamentos do Laos e do Camboja. Com certeza não é uma civilização
iluminada aquela que se orgulha de reduzir o Iraque a um nível pré-industrial –
matar dezenas de milhares de vítimas inocentes, incluindo mulheres e crianças, e
mantendo Saddam Hussein, o nosso senhor da guerra, no poder.
Noam Chomsky – É habitualmente esperado que a ação militar dos EUA deixe o tirano
assassino do Iraque no poder, prosseguindo com o seu programa de armamento e minando
qualquer inspeção internacional que exista. Também se devia chamar a atenção para o fato
de os piores crimes de Saddam terem sido cometidos enquanto ele era um aliado e um
parceiro comercial favorecido dos EUA e que, imediatamente depois de ele ter sido expulso
do Kuwait, os EUA observaram silenciosos enquanto ele se foi o responsável pela chacina
dos iraquianos rebeldes – primeiro os xiitas e depois os curdos – recusando mesmo o acesso
destes a armas capturadas dos iraquianos. As histórias oficiais raramente transmitem uma
imagem exata do que está a acontecer. As histórias oficiais também não criarão as
Para além de uma educação domesticadora
estruturas para desvendar a verdade. Uma educação que busca um mundo democrático
deveria fornecer aos estudantes as ferramentas críticas para fazer as ligações que
desvendariam as mentiras e enganos. Em vez de doutrinar os estudantes com mitos
democráticos, as escolas deveriam envolvê-los na prática da democracia.
Donaldo Macedo: É pouco provável que as escolas deixem de doutrinar os estudantes com
mitos, já que é através do poder da propagação dos mitos que a ideologia dominante
tenta abafar a manifestação de uma democracia verdadeiramente cultural e manter a
presente hegemonia cultural e econômica. Eu concordo com você, quando você diz
que as escolas deveriam envolver os estudantes na prática da democracia. Contudo,
como você já apontou diversas vezes, para o conseguir as escolas têm de fornecer
aos estudantes as ferramentas críticas para desvendar o conteúdo ideológico dos
mitos, para conseguirem começar a compreender melhor porque é que, por exemplo,
o professor de David Spritzler e o diretor da escola, que tinham investido fortemente
no sistema doutrinal dominante, se deram ao trabalho de sacrificar os princípios do
próprio Juramento de Fidelidade para impedirem Spritzler de viver na verdade, uma
vez que indivíduos que querem viver na verdade representam urna ameaça real ao
sistema doutrinal dominante e devem ser eliminados ou, pelo menos, neutralizados.
Por isso, não devemos ficar surpresos com o fato de o professor e o diretor tentarem
impedir David Spritzler de apontar a hipocrisia e a diferença de classes na nossa
sociedade supostamente sem classes.
Noam Chomsky – O mito de que vivemos numa sociedade sem classes é uma farsa, mas
uma em que a maioria das pessoas acredita. A minha filha, que é professora numa
universidade pública, conta-me que a maioria dos estudantes dela se consideram de classe
média e não mostram qualquer sinal de consciência de classe.
Donaldo Macedo – O próprio discurso acadêmico aponta para a ausência de consciência
de classe. Apesar de nos meios de comunicação social se encontrar o termo classe
trabalhadora e também classe média (como “uma redução dos impostos para a
classe média”), nunca se vê mencionada uma classe dominante ou classe alta.
Noam Chomsky – Uma classe dominante de certeza não encontrará. É simplesmente
suprimida. E os estudantes da classe trabalhadora como os da turma da minha filha não se
consideram da classe trabalhadora. Isso é outro sinal de uma verdadeira doutrinação.
Donaldo Macedo – A elite dominante, ajudada pela intelligentsia, fez grandes esforços
para criar mecanismos que perpetuam o mito de que os Estados Unidos são uma
sociedade sem classes. Com todo o debate acerca da falha da educação neste país,
uma das variáveis que nunca é mencionada é a classe, apesar de a classe ser um
fator determinante para o sucesso escolar. A maioria dos estudantes que não passam
de ano provêm geralmente das classes mais baixas, e contudo os educadores evitam
religiosamente utilizar a classe como um fator nas análises e afirmações. Em vez
disso, criam todo o gênero de eufemismos como “economicamente marginais”,
“estudantes desfavorecidos”, estudantes “em risco” etc., como um processo de
evitar nomear a realidade da opressão de classes. E se se utilizar a classe como um
fator de análise, é-se imediatamente acusado de guerra de classes. Lembra-se da
campanha presidencial de 1988, quando George Bush admoestou o seu oponente
dizendo, “Não vou deixar que esse governador liberal divida esta nação... Eu acho
que isso é para as democracias européias ou algo do gênero. Não para os Estados
Unidos da América. Não seremos divididos por classes... somos o país dos grandes
sonhos, das grandes oportunidades, do jogo limpo, e esta tentativa de dividir a
América em classes falhará porque o povo americano irá perceber que este é um país
muito especial, porque qualquer pessoa a quem seja dada uma oportunidade pode
vencer e realizar o sonho americano”.
Noam Chomsky – Sim, é um país muito especial se se for rico. Para tomarmos um exemplo
muito simples, repare como o sistema tributário se torna cada vez menos progressivo ao
enriquecer os ricos através de um grande corte fiscal e enormes subsídios que ao longo da
história têm sido dados às corporações. Bush está certo ao falar de uma guerra de classes.
Porém, é uma guerra de classes concebida para esmagar ainda mais os pobres. Todos os
indicadores apontam que a pobreza tem se mantido alta entre as crianças, e a desnutrição
está piorando com os programas levados a cabo para promover os “valores familiares”. O
assalto ao estado do bem-estar social serve para esmagar ainda mais os pobres, as mães que
recebem pensões e outras pessoas que precisam de ajuda, enquanto mantém intacta a
poderosa ama, subsidiando corporações com transferências maciças de dinheiro. Nós temos
um sistema de seguro social, mas é um seguro social para os ricos. Para se manter um
sistema de seguro social em bom estado de funcionamento para os ricos, é preciso ter uma
classe empresarial altamente consciente. As outras pessoas têm que ser convencidas de que
vivem numa sociedade sem classes. As escolas sempre estiveram a serviço da manutenção
deste mito.
Notas
1 Tradução livre da citação: Paulo Freire. The Politics of Education. Culture, Power, and Liberation (South
Hadley, Mass.: Bergin & Garvey, 1985), 103. [NT: Este livro corresponde aos textos publicados em Ação
cultural para a liberdade e outros escritos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976]
2 Ibid.
Para além de uma educação domesticadora
-
NT1 Juramento à bandeira dos EUA: “Eu prometo lealdade à bandeira dos Estados Unidos da América e à
República a qual representa, uma nação, sob Deus, indivisível, com liberdade e justiça para todos”. In:
http://www.usflag.org/pledge.portuguese.html.
-
NT2 A Comissão Trilateral é uma organização internacional privada que congrega cerca de 325 personalidades
líderes em diversas áreas de actividade – empresarial, política (excepto quando em funções
governamentais), académica e imprensa – provenientes das três maiores regiões industrializadas e
democráticas do mundo: América do Norte, Japão e Europa. In: http: /www.fpglobal.pt/pt/tril.html.
-NT3 Grande empresa estadunidense, líder no mercado das telecomunicações.
Correspondência
Noam Chomsky, Massachussets Institute of Techonology, Boston, USA.
Donaldo Macedo, University of Massachussets, Boston, USA.
E-mail: donaldo.macedo@umb.edu
Entrevista realizada em junho de 1999 e publicada em
Currículo sem Fronteiras com autorização do entrevistador e do entrevistado.