Amigos e amigas. Segue abaixo um textinho sobre os livros que estão sendo recolhidos nas escolas públicas de São Paulo e outras cositas de um professor.
Leiam e me digam o que acharam, por favor.
De repente minha aula é interrompida por dois pré-adolescentes empertigados em realizar a função a qual lhes incumbira o diretor, a mando da diretoria de ensino, que por sua vez cumpria ordem da Secretaria da Educação e por aí vai. A tarefa? Recolher os livros de poesia de Manoel de Barros, que fora distribuídos para as quintas e sextas do ensino fundamental, pois eles trazem palavrões.
Mas não era outro o livro e outra série? Não, descobriram que os estudantes das quintas e sextas também tinham sidos expostos a toda sorte de palavrões. Tentei me inteirar do fato todo, mas não teve acordo. Afinal, ordens são ordens. Foi o diretor que mandou. E lá se vai mais uma pilha de livros recolhidos, não se sabe pra onde...
O livro de Manoel de Barros é de uma beleza de machucar. Poemas seus ilustrados por iluminuras de sua filha Martha Barros. O que justificou o índex? A caça as bruxas? A menção ao ato sexual em um poema, usando o que eles determinam como palavra de baixo calão, o verbo foder. O que talvez não seja mesmo recomendado para um livro a ser adotado pela quinta e sexta série. Além disso, a expressão: cu da formiga (Que o cu de uma formiga é mais importante para o poeta do que uma Usina Nuclear) e passei a mão na bunda do vento.Essas duas últimas, no meu entendimento não justificariam a apreensão do livro. Tudo isso sei meio que de orelhada, fui descobrindo perguntando aqui e ali, visto que nada foi nos informado oficialmente. Mas é normalmente assim que funcionam as coisas nessa ilha de Lost que se tornou a Escola Pública no Estado de São Paulo. Usando uma outra expressão que não se enquadra nas normas de bom gosto, como maridos traídos os professores são sempre os últimos a saberem, apesar de serem os primeiros a serem cobrados.
Não pretendo com essa reflexão questionar se o conteúdo do livro serviria ou não para as referidas classes. No meu entendimento existe uma coisa que precede a isso, que é a forma como as coisas são feitas. Sempre de maneira superficial, espetaculosa e pelo viés moralista. A sensação de um constante meter ( ops) os pé pelas mãos.
E agora se instaura um clima de moralização com todos apontando os dedos em riste para o bode expiatório da vez. E vamos passar a peneira em toda a literatura presente na escola, quiçá no mundo que contenha expressões condenáveis. Em um texto regionalista que eu passei para os estudantes, a palavra Satanás fez soar o alarme, mas consegui defende-la alegando que na bíblia ela era citada várias e várias vezes. Na mesma bíblia, diga-se de passagem, que contém um dos mais belos poemas eróticos de todos os tempos que é “Os cânticos dos Cânticos de Salomão”.
Enquanto isso vamos sendo obrigados a conviver com coisas realmente imorais como o salário dos professores, a obrigação de aplicar os tais cadernos dos alunos ( o do segundo bimestre chegou agora nas escolas, decorrido um mês do mesmo) que jogam no lixo a autonomia do corpo docente, o clima de guerra civil instaurado nas escolas, muitas vezes tendo seus espaços divididos com a polícia ou/e com o tráfico, as salas super lotada, o descaso.
As imorais condições de trabalho que estão levando colegas nossos a simplesmente adoecerem e em muitos casos a enlouquecerem.
A imoral situação de estudantes semi alfabetizados, em séries avançadas, tratados como lixo por esse sistema educacional excludente que se finge humanitário.
A imoralidade desse mesmo sistema educacional que contando com amplos setores da imprensa como cúmplice ora tentam passar a fatura da falência que eles mesmo engendram dia a dia para os estudantes, ora para seus familiares, e na maioria das vezes para os professores, criando um clima de disputa cega no interior das escolas, uma guerra onde não se encontra vencedores, apenas feridos.
E frente a tudo isso, não podemos nem mandar os responsáveis por essa situação para o lugar que gostaríamos que eles fossem.
Pois além de imoral, seria caso de polícia!
Um professor
PS: Sobre a questão das palavras cabe um poema do Manoel de Barros, que se encontra no livro capturado, Memórias Inventadas As infâncias de Manoel de Barros.
Cabeludinho
Quando a avó me recebeu de férias, ela me apresentou aos amigos:
Esse é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu.
Como quem dissesse no carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava sério. Mas todo mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir.De outra feita no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve/ que eu não sei a ler. Aquele preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário