Fonte: http://passapalavra.info/?p=5251#more-5251
5 de Junho de 2009
Os independentes, sem assumirem organização e posições mínimas comuns, sempre perdem para as organizações burocráticas. Enquanto a Autonomia não se transformar numa prática organizativa e num projeto político, não se reverterá essa situação. Por A. Nônimo
Eram pouco mais de 16 horas na segunda-feira, dia 25 de Maio. Caminhava eu pela USP [Universidade de São Paulo] em sentido da reitoria, para pegar algo do ato dos funcionários em greve, que já começara. Quando cheguei, vi algumas centenas de pessoas, dispersas na frente da reitoria, e um caminhão de som bastante barulhento onde sindicalistas gritavam. Pelas bordas, grupinhos menores conversavam. Me aproximei de um grupo de funcionários grevistas, que jogavam truco [um jogo de cartas] num tabuleiro improvisado sobre uma lata de lixo, indiferentes ao caminhão. Escutei brevemente alguns comentários deles, algo como “nós que somos peões é que apanhamos da polícia e ninguém lembra de nós”.
Logo em seguida, passou uma bicicleta com dois estudantes, usando como capacetes televisões ou monitores de computador, certamente numa intervenção estética, que provocou risos nos grevistas e especialmente nos jogadores de truco.
Pouco depois, percebi uma correria de pessoas, que mais pareciam formigas em fila, dando a volta no prédio, em direção aos seus fundos. Segui a corrente rapidamente, intuindo do que se tratava, onde estudantes gritavam “Ocupa, ocupa, ocupa!” Logo irromperam, pela parte de trás da reitoria, e dezenas de estudantes entraram numa torrente de pessoas – a reitoria estava sendo ocupada pelos fundos.
Permaneci do lado de fora, vendo as pessoas entrarem e o que se sucedia. Foi quando vi uma multidão se aglomerar do lado de fora, e uma euforia de pessoas dizendo – “está ocupada, ocupamos!” Mas… e agora?
Logo em seguida, ocorreu que um grupo de estudantes de corrente política formou uma roda do lado de fora, querendo puxar [convocar] uma assembléia. Discutia-se sobre se fazer a assembléia do lado de fora ou dentro do prédio ocupado. Sabíamos, do lado de fora, que os estudantes ocuparam a parte de trás da reitoria, mas que uma porta fortemente bloqueada travava o acesso ao prédio maior da reitoria.
Começou a discutir-se se a assembléia seria dentro ou fora. Foi quando percebi o caminhão de som se posicionando, e os partidos e algumas correntes políticas, bem como os militantes do DCE [Diretório Central dos Estudantes, ou seja, a Associação de Estudantes] fazendo pressão para realizar a assembléia do lado de fora do prédio. E de fato ela ali começou.
Foi quando percebemos (não só eu, mas grupos de estudantes) que aquilo era uma manobra que procurava concentrar as pessoas fora do prédio – e isto de fato em pouco tempo esvaziou a ocupação (na qual ficaram poucos estudantes, talvez uns 30), e concentrou toda a multidão do lado de fora, em frente à porta dos fundos. E assim houve uma assembléia dos funcionários e dos estudantes, onde se sucederam mais de 70 inscrições de falas, cujo conteúdo girava ao redor, entre outras coisas, de “decidir se ocupa ou não a reitoria” – o que salta aos olhos o absurdo, pois a reitoria já estava ocupada!
usp-21Assim, anoiteceu. Era visível, ali no meio, que no miolo [centro] da assembléia predominavam só as correntes políticas, e que aquilo se transformava em um blá-blá-blá infinito, um verdadeiro ritual formal que separava a decisão da execução (uma vez que já estava ocupada!). E também se percebia que os estudantes mais independentes não ocupavam em maioria o miolo da assembléia, mas se dispersavam em rodinhas ou pequenos grupos que discutiam pelas bordas, onde as conversas ressaltavam uma desconfiança em relação ao papel do DCE e dos partidos ali presentes e um sentimento de que a ocupação estava indo por água abaixo enquanto aquele espetáculo se desenrolava. Pelas janelas do prédio, homens de gravata abriam de quando em quando as cortinas e espiavam a assembléia, enquanto falavam em celulares [telemóveis]. Era também perceptível vários indivíduos estranhos que estavam ali nas bordas da assembléia, fotografando pessoas, e era possível saber muito bem do que se tratava. Um helicóptero da polícia (certamente não era o “águia” do Datena) ficava sobrevoando ao redor da assembléia a uns 500 metros de altura, de forma intimidadora, jogando holofotes sobre a assembléia e as pessoas, e dando voltas em círculos pelo campus da universidade, jogando os holofotes em outros lugares, talvez à procura de movimentações suspeitas.
Alguns estudantes com “capacetes” de monitor de computador, escritos “Univesp” (Universidade Virtual do Estado de São Paulo), encenando placas eletrônicas como pranchas de anotações, circulavam em uma intervenção estética pelas bordas. Alguns estudantes brincavam de digitar no ar, perguntas aos computadores ambulantes, que respondiam ironicamente, fingindo vozes de máquinas. Talvez naquele momento era a única ação mais genuinamente dotada de sentido político – uma ação estética.
Assim, criava-se um clima pesado, e um sentimento de desolação, de esvaziamento da ocupação e de instauração de um ritual burocrático de ruptura do processo (não que as assembléias não sejam necessárias, elas são essenciais, mas daquela forma como ocorria, era uma ruptura brusca do processo e uma fetichização da assembléia pela assembléia, onde a democracia vira democratismo, fim em si mesma). Alguns estudantes chegavam dizendo que a tropa de choque já estava na entrada da universidade (o que já se confirmou pelos jornais no dia seguinte) aguardando ordens para entrar.
usp-11Enfim, ao fim de uma assembléia cansativa de quase 3 horas e que foi se esvaziando, votou-se por nova assembléia e piquete na quarta-feira, e a ocupação assim estava desmantelada. Os poucos estudantes que restavam lá dentro se retiraram. A porta de vidro de trás estava quebrada – coisa que os jornais usaram como acusação de vandalismo depois, como sempre. Chegavam repórteres de televisão. Muitos estudantes tiravam o rosto de foco para não aparecer. Um carro de uma emissora esticava num poste uma antena-mangueira que parecia uma imensa serpente em espiral.
Acabada a assembléia, formavam-se rodinhas, onde repórteres entrevistavam pessoas do DCE e dos partidos políticos. Não tardaram os estudantes em cercá-los e vaiá-los, gritando “Pelegos! Pelegos!”. O DCE mesmo foi vaiado.
Uma vez acabado tudo, um grupo de pessoas, às quais me juntei, achou melhor sair dali, pois com poucas pessoas, fica-se mais visado. Os últimos ocupantes saíam, alguns com camisetas no rosto.
Andamos com o grupinho de independentes, e fomos parar em uma praça, onde tomamos cerveja e discutimos os destinos do movimento e o desmantelamento da ocupação. Ficou muito claro que o DCE e os partidos ali presentes (PSTU, PSOL e algumas correntes de esquerda) não quiseram levar a ocupação adiante e procuraram manobrar e quebrar a ocupação. O DCE, cuja gestão se chama “Nada será como antes” (PSTU), era chamado, ironicamente, pelos independentes, de “Tudo continua exatamente como antes”, “Mais do mesmo” e até um disse: “Não, eu acho que é Nada será como antes mesmo, porque esse é o fim do movimento estudantil”.
Também se discutia o papel da própria gestão do DCE, que se posicionou sempre contra a ocupação do prédio do DCE, ocorrida algumas semanas antes. Falava-se da briga por causa das chaves do prédio, dos partidos que eram contra um comando de mobilização unificado, das manobras de assembléias, dos acordos da atual gestão do DCE com a reitoria e etc. O mais interessante é que me ocorreu lembrar que a atual chapa [lista] do DCE, a “Nada será como antes”, reivindicava para si a ocupação da reitoria ocorrida em 2007, mas todos os relatos que correm demonstram que, ao contrário, os partidos políticos dentro do movimento estudantil (PSOL, PSTU, etc., com exceção do PCO) pressionavam pela desocupação desde o início. Isso sem contar a famosa história da visita de um famoso dirigente sindical de oposição, que já foi inclusive candidato a presidente algumas vezes, num dos primeiros dias da ocupação de 2007, onde atribui-se a ele ter dito que seria necessário “pôr freios na molecada”.
Nas rodinhas de conversa de estudantes insatisfeitos, era possível perceber a totalidade do que aconteceu: na ocupação da reitoria, perdeu-se o espírito do momento, numa interrupção brusca e numa ação que canalizou a energia do movimento para fora e o destruiu. Percebia-se claramente que os independentes, na sua postura mais radicalizada, na ausência de assumir projetos, organização e posições mínimas comuns, acabam por sempre perder para as organizações burocráticas, que possuem projeto político (embora projeto de poder). Estas sempre se apropriam do que fazemos. Parecia claro que enquanto a Autonomia não se transformar numa prática efetiva, organizativa, e finalmente num projeto político, não se reverterá essa situação.
Também ficava a questão sobre o que teria acontecido se a ocupação fosse vitoriosa – a tropa de choque teria entrado em ação? De qualquer forma, aqueles estudantes diziam enfaticamente que “os partidos políticos e a pelegada [«pelego»: fura-greves] institucionalizada fizeram o serviço sujo, a tropa de choque nem precisou entrar em ação”.
Saí dali, como observador de tudo aquilo, com muitas dúvidas, inclusive sobre se uma ocupação reduzida de minoria se sustentaria naquele momento de repressão e com a massa dos estudantes na passividade bovina tendo aulas normalmente no resto do campus – estes até talvez apoiassem a repressão. Ficava muito patente como o movimento estudantil faz ainda menos trabalho de base que o sindical. Ainda mais grave era a situação, quando a alardeada greve dos docentes parece não ter deixado de ser uma mera idéia – pois mesmo quando o governo profere um ataque tão grande às suas carreiras e evolução funcional, que afetaria os professores jovens, estes parecem estar muito mais preocupados em participar freneticamente de congressos e publicações, para encher currículo, e absolutamente alheios a qualquer luta.
E também, enquanto isso, Serra ataca violentamente os professores estaduais, mas o movimento parece já estar morto de início. Parece haver uma crise da esquerda sem projeto e meramente reativa, movimentos radicalizados de minorias, uma passividade das maiorias, uma imensa burocratização que perpassa até as correntes de esquerda mais radicais, e um cheiro de fascismo rondante no ar, com sede de repressão.
Fui embora, tarde da noite, pensando em tudo aquilo que ocorrera, e começando a entender as coisas - no fracasso daquela tentativa de ocupação, tudo isso pareceu ainda mais evidente.
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