sábado, 4 de dezembro de 2010

Os trabalhadores da cultura, o MinC no governo Lula e o que virá…

Álvaro Santi | do site: http://www.culturaemercado.com.br
Há um ano, por ocasião do Dia do Músico (22 de novembro), o Cultura e Mercado publicava minha “Carta Aberta à Ordem dos Músicos do Brasil”, bastante lida e comentada. Se algo mudou na OMB desde então, não sei. Eles continuam me enviando o boleto bancário com a anuidade, para o caso de eu mudar de ideia.
Assim, este ano preferi aproveitar o momento pós-eleitoral e gastar energia refletindo sobre a situação da categoria após oito anos de Governo Lula, em que o MinC esteve sob o comando do músico Gilberto Gil, seguido de Juca Ferreira; e nas perspectivas para o próximo mandato. Até o gramado da Esplanada dos Ministérios sabe que a gestão Gil-Ferreira à frente do MinC estabeleceu um divisor de águas, de maneira análoga ao que fez o Governo Lula em outras frentes. Os números comprovam isso, por qualquer lado que se olhe. Contudo, ainda estão por merecer atenção questões relativas ao trabalho dos artistas.
No próximo dia 22 de dezembro, a Lei 3.857/60, que regulamentou a profissão de músico e criou a OMB, completará meio século, período no qual não sofreu nenhuma atualização. Não é errado debitar esse atraso aos dirigentes que se encastelaram lá desde a ditadura militar, temerosos de que qualquer mudança possa prejudicar sua fonte de receita, e por isso aguardam em silêncio o momento de saltar do barco, antes do naufrágio irreversível. Mas é igualmente certo que o Ministério da Cultura não se interessou pelo assunto.
Em 2004, o MinC já tinha noção de que a OMB (entre outras entidades) não representava minimamente os interesses dos músicos, tanto que estimulou a convocação de plenárias abertas em diversas capitais, como forma de conhecer as demandas da classe. A estratégia por sinal deu certo, pois foram muitos os que atenderam ao chamamento, criando os chamados Foruns Permanentes de Música, logo articulados em um Forum Nacional. Tão vastos, numerosos e antigos eram os problemas do setor que em poucos meses ao longo de 2005, profissionais da música de 12 diferentes estados elaboraram documentos-diagnóstico sobre a atividade musical, reunidos em 7 grandes temas: formação, trabalho, direito autoral, financiamento, produção, difusão e consumo.
Este processo, coordenado pelo Centro de Música da FUNARTE, contou com grande número de colaboradores trabalhando em rede virtual. Outros atores da sociedade civil organizada (ABPD, ABMI, ABM, ECAD, ABEM, etc.) e do próprio governo colaboraram para a forma final desses documentos, porém sempre a partir das propostas redigidas pelos foruns, a partir das bases. (Ainda que a FUNARTE tenha publicado, ao final daquele período, uma Revista das Câmaras Setoriais, por algum motivo não julgou importante incluir nela esses documentos, mas eles podem ser lidos em http://www.cultura.gov.br/cnpc/camaras-setoriais/musica).
Um momento constrangedor desses encontros foi quando a FUNARTE cedeu espaço à fundação dos servidores de uma estatal para vender seu plano de previdência privada, “exclusivo para os profissionais da cultura”. Na contramão de um governo orgulhoso de ter criado milhões de empregos “com carteira assinada”, o MinC preferia ignorar a informalidade predominante no setor cultural, oferecendo aos trabalhadores da cultura um “complemento” ao que não existe, uma espécie de “se não tem pão, que comam bolo”. O negócio deu certo, com o auxílio de alguns sindicatos, que viram nele a estratégia perfeita para atrair filiados.
A interrupção quase total – e jamais explicada – das atividades das Câmaras Setoriais após a I Conferência Nacional de Cultura, em dezembro de 2005, por dois anos inteiros, levou à desmobilização da classe musical, pela falta de perspectiva de resultados práticos. Que no entanto aconteceram, ao menos indiretamente provocadas por esse movimento amplo de debate e ação política, que se desdobrou em outras frentes.
Um deles foi a aprovação da Lei 11.769/2008, que ao restabelecer o ensino de música na escola deverá expandir e qualificar o mercado de trabalho para os músicos. Outro, o debate sobre a legislação autoral, apontando para avanços na transparência do setor (ainda que a proposta colocada pelo MinC em consulta pública contenha excessos prejudiciais aos autores em nome do “acesso à cultura”). Há outros mais, não restritos a um setor, como a construção do Plano e do Sistema Nacional de Cultura, já aprovados no Congresso, e o progressivo aumento dos recursos da pasta.
Do ponto de vista da organização autônoma da classe, alcançou-se hoje um patamar muito distinto daquele existente há oito anos. Novos modelos vem sendo testados com sucesso, como é o caso das cooperativas, com intensa atuação local, já em vias de se articularem em uma federação nacional. Um conjunto de sindicatos encontra-se no mesmo caminho.
Já na primeira reunião do CNPC, em março de 2008, representantes das Câmaras reivindicaram unanimemente ao MinC a retomada urgente de suas atividades. O então Secretário-Executivo Juca Ferreira reconheceu que “o MinC, a partir de certo momento, não soube trabalhar o crescimento da experiência das Câmaras Setoriais”, mas alegou que “houve um excesso de partidarização de algumas Câmaras, houve uma perda de densidade de outras… inclusive porque houve uma perda de pessoas significativas que foram até certo momento e se sentiram artificialmente deslocadas do processo e saíram.” Pode-se especular se nessa fala “pessoas significativas” seriam celebridades com quem o governo gostaria de contar em suas instâncias de participação social, na expectativa de atrair holofotes e render fotos em cadernos de cultura. Quanto à “partidarização”, se existiu foi dentro do próprio Ministério, e não nas Câmaras (ao menos na de música).
No setor musical em particular, esse descontentamento da cúpula com os órgãos de participação social teve desdobramentos. A partir dos debates para a realização da Feira Música Brasil, em 2009, o Centro de Música da FUNARTE instituiu e coordena uma instância informal paralela, o chamado Conselho da Rede Música Brasil, “conselho de caráter consultivo criado para estimular o debate em espaço público sobre políticas para a música”. Questionada sobre se esse conselho não estaria usurpando competências atribuídas ao Colegiado Setorial de Música pelo Decreto 5.520/05 (“fornecer subsídios para a definição de políticas, diretrizes e estratégias dos respectivos setores culturais”), e portanto esvaziando este órgão, a direção do CEMUS alegava que a representatividade do Colegiado era limitada. Porém após a última eleição do Colegiado, em março deste ano, quando intensa negociação permitiu superar essa limitação, aclamando-se na Pré-Conferência Setorial, uma chapa única que integrou ao Colegiado praticamente todas as entidades com assento no conselho da Rede, e todos os estados brasileiros, a alegação mudou. O problema do Colegiado passou a ser o “engessamento”, a falta de agilidade, já que se reúne somente duas vezes por ano.
Isto posto, é preciso registrar que o Ministro Juca Ferreira reconheceu em mais de uma oportunidade a pertinência das proposições das Câmaras Setoriais (e da I Conferência Nacional, tributária direta daquelas), afirmando que muitas delas se haviam naturalmente incorporado às diretrizes da gestão do MinC. Está claro que o próximo governo deverá atentar para as questões que dizem respeito ao trabalho dos músicos, em especial a urgente reforma da Lei 3.857/60, cuja iniciativa, por envolver autarquia federal, compete ao Poder Executivo. Pois a tão festejada (e pouco estudada de fato, entre nós) “economia da cultura” não existe sem trabalho e nenhum “novo modelo de negócio” pode ter como base a “velha precarização do trabalho”.
Uma tal iniciativa pode e deve contar com a participação do Colegiado Setorial de Música. Pois o dinamismo inerente à organização da sociedade civil não pode servir de pretexto para desqualificar os organismos de representação dessa sociedade na gestão do Estado, muito menos pelo próprio governo que os instituiu.

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