quarta-feira, 29 de julho de 2009

Educação libertária produz conhecimento, seja onde for!

postado da casa lan
Fonte: PassaPalavra.info
A Escola

O CEFAM era destinado à formação para o magistério e foi criado em Franco da Rocha ainda na década de 1980. A partir de 1994 se instalou em um prédio novo e desde 1996 além da formação para o magistério, que era a função original, durante o período matutino, passou a abrigar os alunos de ensino médio no período vespertino e noturno, por conta da falta de vagas em outras unidades. Com um prédio grande e situada a dois quilômetros do centro – ao lado do portão de entrada de uma penitenciária – a escola era freqüentada – além de pelos integrantes do magistério - pelos alunos que não haviam conseguido vagas em outras unidades mais próximas de suas casas. Portanto, estudar no CEFAM, para quem não era do magistério, dado a longa distância, era tido como uma condenação.

Para nos situarmos comparativamente, os anos iniciais do novo CEFAM, de 1994 até 1996, foram marcados por uma gestão autoritária e pela completa apatia estudantil. A diretora responsável pela unidade fazia valer a autonomia disciplinar de que dispõe todas as burocracias e erigia um amontoado de normas dignas dos tempos mais férreos da história do país. Dessa forma, além das regras já tradicionalmente conhecidas, - da submissão geográfica e pedagógica do aluno na sala de aula, passando pela obrigatoriedade de filas e imposição férrea dos horários -, a diretora havia implementado a proibição do beijo e dos namoros, do uso de bonés, também o controle sobre a vestimenta e a punição para quem passasse no corredor ao lado da diretoria.
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Foi entre 1997 e 2000 que ocorreram alterações drásticas na unidade escolar. Contrariamente à política da antiga direção - extremamente autoritária -, com a vinda de um novo diretor, presenciou-se a instauração de um projeto pedagógico onde se tinha realmente interesse que os alunos aprendessem, tornando-se pessoas mais conscientes, ativas e dedicadas ao desenvolvimento educacional.

A vinda desse novo diretor, em 1997, ligado ao PT, com novos projetos e novas idéias, coincidiu com um período em que a contratação dos professores era realizada mediante a apresentação de um projeto à escola. Dessa forma, a diretoria da escola podia selecionar aqueles professores que mais se coadunavam com o projeto pedagógico que pretendia implementar. Assim, a citada escola acumulou em seu coletivo de professores uma maioria de docentes estudantes da PUC, alguns da USP, outros provenientes de faculdades particulares, mas todos eles de tonalidade à esquerda e na maioria de passado com participação em lutas sociais – o que implicava um caráter mais prático dessa esquerda. Esse acaso propiciou que a escola fosse formada por um corpo docente de variedade política excêntrica para Franco da Rocha. Dentre uma maioria de professores ligados ao PT, havia uns dois anarquistas, alguns do PSTU, outros ligados às lutas do povo negro, outros independentes e mais ecléticos.

A presença desse coletivo deu uma democratizada na escola e o espaço escolar abriu-se à participação dos alunos. Estes passaram a ser incitados a fazer poesias, jornais, grupos de teatro, rádio, festas, bandas, festivais, fanzines, manifestações artísticas, debates, eventos esportivos. Criou-se uma horta coletiva, de usufruto da escola que era tocada pelos alunos, dias especiais de limpeza geral, onde os alunos, junto com professores e funcionários, punham-se a limpar e pintar a escola. Os alunos podiam escrever nas paredes – em locais específicos - fazer desenhos, colar cartazes. Surgiu um espaço amplo para a manifestação e debate estudantis, assim como, um amplo espaço para recreação.
De imediato criou-se um conselho colegiado com presença estudantil para debater as questões mais pertinentes e os estudantes começaram a participar da gestão escolar; organizaram-se palestras, filmes, desapareceu o pudor que tolhe as escolas: tudo podia ser debatido; instaurou-se uma biblioteca que era mantida pelos alunos e estes eram incitados à leitura. Os discentes podiam participar das assembléias de professores, embora não tivessem direito de voto, tinham direito de fala e podiam somar-se às excursões de protestos dos mestres até o centro de São Paulo [1] . A rotina escolar passou a ser permeada pela denúncia das desigualdades sociais, que eram debatidas até nas aulas de português ou física, visando uma qualificação política dos alunos e o desenvolvimento de uma cidadania ativa.

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O impacto educacional do CEFAM foi tão grande que, até então, dos poucos alunos de Franco da Rocha que chegaram às universidades estatais, ou às particulares de melhor qualidade, assim como aos bons cursos técnicos, a quase totalidade havia passado por lá. Um número enorme de pessoas passou em concursos públicos e de lá saíram muitas educadoras com formação técnica e política diferenciada, além de o colégio ter constituído a base formativa de muitas pessoas que acabaram desenvolvendo papel ativo em lutas estudantís no interior da UNESP, PUC-SP, Fundação Santo André, cursinhos populares, faculdades e movimentos vários.

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Não pode passar sem consideração que todo o foco de mudanças implementadas e vivenciadas na escola tinha como alicerce a busca do aprendizado. No contexto de uma unidade escolar agrupada por alunos pobres de uma cidade pauperizada da grande São Paulo, a denúncia das mazelas sociais, da exclusão, da exploração, da inobservância dos direitos sociais por parte do estado e do empresariado, constituiu uma forma de motivar os alunos ao aprendizado. Um aprendizado coadunado com a luta por direitos e/ou efetivação de muitos não cumpridos.

Na busca do aprendizado, havia uma preocupação efetiva com a figura e a condição social do aluno. Além de buscar um tratamento humanizado e mais igualitário entre todos na unidade escolar a unidade buscava fazer a sua parte no que dizia respeito à responsabilidade social para com o estudantado. Assim, embora somente nesse 2009 tenha sido aprovada a lei que garante aos estudantes do ensino médio o direito à merenda escolar, a nova gestão do CEFAM procurou, desde o início, construir parcerias com a prefeitura para que fosse oferecida alimentação aos alunos. No mesmo sentido, embora não fosse de sua obrigação ou alçada, a gestão se preocupou em convencer a empresa de ônibus da cidade a oferecer transporte desde a porta da escola nos horários de saída noturnos. A unidade situava-se afastada do centro, em região escura, de estrada e matagal.

A perspectiva do projeto partia do pressuposto de que os alunos possuem inteligência e criatividade não exploradas e não manifestadas e a tônica esteve em buscar uma cada vez maior destruição das amarras que fazem tantos andarem de cabeça baixa. Procurou-se por variados modos não somente incitar os alunos a participação, mas foi-se abrindo o espaço escolar às projeções e propostas vindas deles próprios. Com o tempo, ao lado das rotineiras atividades, os discentes foram mostrando-se capazes de organizar grupos de estudo, debates, palestras, assembléias, atos, manifestações, eventos culturais, publicações e outras coisas mais.

Embora todo o processo passasse pela motivação que é construída aos poucos dentro das salas de aula, o projeto adquiriu uma forma estética e política na cada vez maior tomada dos pátios, rampas e corredores como locais de aprendizado e vivência pedagógica. Naturalmente, até as velhas, curiosas e clássicas pichações de banheiro, foram desaparecendo ou tornando-se menos importantes quando cada vez mais os alunos encontravam espaço amplo de expressão na música que tocavam na rádio, nos textos que colavam nas paredes e expressavam nos jornais, nas letras cantadas no palco, nos poemas declamados, na expressão estética de suas roupas postas à mostra sem medo ou vergonha, nos discursos, nas dramatizações.

Como não era somente o espaço das salas de aulas que eram vistos como locais de aprendizado, mesmo os momentos de paralisação e/ou greve não implicavam no desligamento dos alunos e no abandono do ensino. Os discentes eram convocados a participar das manifestações, das panfletagens, dos atos, das discussões, palestras e debates aproveitando esses momentos e esses locais como situações de aprendizagem. Daí a possibilidade de se aprender sobre estrutura educacional do país, legislação, financiamento, cidadania ativa, sindicatos, movimentos sociais, projetos educacionais etc. Da mesma forma, muito antes de surgir o Escola da Família, a unidade tinha um bom funcionamento nos finais de semana, com debates, palestras, filmes, shows, desfiles, eventos etc. Numa mesma cidade, enquanto em outras escolas a polícia invadia os prédios com metralhadoras na mão para combater, nas palavras dos policiais, “a invasão do espaço público”, no CEFAM o espaço escolar era utilizado como ponto de aprendizagem e entretenimento não só por seus alunos mas, ainda, por alunos de outras unidades e movimentos sociais vários. Era aos sábados, era aula: ficavam pra fora da sala, pra dentro da escola.

Numa perspectiva conceitual, podemos dizer que a unidade citada acabou por substituir a tradicional concepção bancária de educação pela idéia de vivência pedagógica. Muito mais do que um dado conteúdo técnico uma unidade escolar transmite um ethos, um conjunto de valores, explícito na forma em que se realiza enquanto vivência pedagógica. Em conjunto com a oferta de dados inputs de saber, a escola pode se apresentar como uma modalidade de sadismo, de tortura ritual e espacial classicamente conhecida nas situações em que as unidades escolares procuram incutir uma mentalidade subserviente nos educandos, também os tratando como fracassados socialmente e moralmente inferiores. Numa linha em que se entende a escola enquanto vivência pedagógica, o aluno nunca fracassa totalmente, pois a escola coaduna a oferta de inputs de saber com uma perspectiva de aprendizado pela vivência. Se dados elementos de saber podem acabar não assimilados, a vivência nunca é perdida. Por outro lado, um saber não assimilado hoje pode o ser futuramente mas a vivência pedagógica é única e não se repete.

Pensar a escola como vivência pedagógica é muito importante porque duas coisas distinguem a unidade escolar de uma penitenciária: a qualidade do saber transmitido e a vivência ofertada. Num contexto de absoluto fracasso educacional das escolas públicas brasileiras onde boa parte dos professores não possui conhecimento para ofertar aos discentes – no Estado de São Paulo, mais de 90 mil professores não acertaram metade das questões em uma avaliação nas próprias áreas em que pretendem ensinar – a vivência pedagógica é o grande elemento a diferir a escola do cárcere, já que o saber não fica muito distante do que é oferecido nas unidades educacionais penitenciárias. Vivência pedagógica implica pensar a escola como local de realização estudantil, onde aprende ensinando e os alunos são o elemento central do processo.

Para Franco da Rocha, cidade onde os meios empresariais e políticos pouco se distinguem dos meios criminais, tendo havido vários assassinatos e espancamentos de militantes, empresários e políticos, atroz repressão policial, onde diretoras convidavam policiais a espancarem alunos, os jovens que, além da tortura estética expressa na miserabilidade visível a que estavam condenados, viviam um cotidiano brutal que incluia espancamentos, tiroteios, estupros, assassinatos, violências várias pelos motivos mais insignificantes, puderam encontrar no CEFAM um espaço de realização pessoal e de vivência do belo e da esperança. Uma vivência de educação libertária, que os livros acadêmicos, amantes do passado, não se dignaram a contar.

* Veja a íntegra em http://passapalavra.info/?p=8964

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