sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A respeito do InterUnesp, da homofobia na USP e do racismo contra os nordestinos. Espectros do capitalismo em decadência: respondamos à altura!

11/06/2010 revistaiskra

Por Simone Ishibashi


Até agora, os homens formaram sempre idéias falsas sobre si mesmos, sobre aquilo que são ou deveriam ser. Organizaram as suas relações mútuas em função das representações de Deus, do homem normal, etc., que aceitavam. Estes produtos do seu cérebro acabaram por os dominar; apesar de criadores, inclinaram-se perante as suas próprias criações. Libertemo-los, portanto, das quimeras, das idéias, dos dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degenerar.
Marx, A ideologia alemã

Nas últimas semanas as páginas dos jornais foram inundadas com notícias que chocaram amplamente a opinião pública, ou pelo menos um setor desta que conserva o mínimo de razão e humanidade. Primeiro, a contaminação total e completa do debate eleitoral com temas como a religião, transformando discussões que deveriam ser políticas e em torno de direitos democráticos elementares, como o direito ao aborto, em um referendo sobre a religiosidade, que mais bem lembrava a Idade Média. Serra, cujo partido já encampa a “campanha pela vida”, que ao lado da Igreja se lança raivosamente contra o direito ao aborto, aproveitou para bradar em alto e bom som suas reacionárias opiniões sobre o tema. Dilma, para constrangimento de todas as mulheres do país, mergulhou com tudo na onda do obscurantismo e publicou uma vergonhosa carta se comprometendo a “não tomar nenhuma ação que fira a família brasileira”, entre outras declarações do estilo. Algum dos candidatos da burguesia se declarou, aproveitando a presença do “Santíssimo papa” em terras brasileiras em meio ao processo eleitoral, para condenar os escândalos de pedofilia – prática que data dos tempos imemoriais – da Igreja? Para questionar a atuação do papa, que todos sabem ter encoberto com um véu tecido com a mais asquerosa impunidade os padres que por décadas abusaram sexualmente de crianças em países como a Irlanda? Evidentemente, não. Ao contrário, todos rifaram o seu “espírito republicano” em troca do apoio da “imaculada” Igreja.
É com este pano de fundo que em um intervalo curtíssimo de tempo aconteceram o caso de agressão por homofobia a estudantes homossexuais da USP, o infame (para colocar um adjetivo publicável, pois o episódio merece outros impublicáveis para descrevê-lo à altura dos fatos) “rodeio das gordas” no InterUnesp, e após as eleições vieram à tona as declarações de uma estudante de Direito incitando a que se “afogasse” um nordestino e várias outras do mesmo teor. Em um intervalo de alguns dias tivemos diante de nossos olhos o inaceitável e repugnante show de horror condensado do reacionarismo capitalista em doses cavalares: homofobia, machismo e racismo expressados de maneira tal que realmente nos obriga a refletir mais pausadamente sobre o seu conteúdo mais profundo. Enquanto o Tea Party se alça à política norte-americana, com quatro senadores e dezenas de parlamentares, sob o lema “patriotas norte-americanos para retomar o que é nosso,” em nosso país os ventos regressivos sopram nos episódios acima citados. Enquanto nos EUA os direitistas mascaram que os arranha-céus e todas as riquezas norte-americanas emergiram sobre o sangue e o suor dos imigrantes, aqui em São Paulo, cuja construção teria sido impossível não fossem as mãos e a inteligência dos trabalhadores nordestinos, há poeiras de humanidade que clamam pelo seu afogamento! A quê isso corresponde?
Num nível mais imediato vemos que todos os três episódios recentemente ocorridos aqui foram executados por jovens, estudantes universitários (dois deles oriundos das principais universidades do país, a USP e a UNESP), provenientes da classe média. Isso questiona noções fartamente aceitas pelo senso comum segundo o qual estes seriam os setores ilustrados da sociedade e, portanto, os portadores de uma visão mais avançada. Não é de todo chocante que isso ocorra ai, pois de espaços de questionamento à ordem instituída, cada vez mais os planos dos governos para as universidades é transformá-las em centros de formação e reprodução da ordem capitalista. Isso inclui ideologia, valores e comportamentos. Em regra geral, não há, por exemplo, disciplinas que se dediquem a estudar a luta das mulheres ao longo da história. Poucas são dedicadas à trajetória das mobilizações dos negros. Porém, são iniciativas isoladas que obrigam a que se pense mais profundamente a serviço de quê e de quem está a universidade. A transformação desta realidade, a partir do combate pela real democratização da universidade, colocando-a a serviço dos interesses dos trabalhadores, é uma necessidade imperiosa.
De uma perspectiva mais profunda, porém, estas ações correspondem em primeiro lugar à própria decadência da dominação burguesa e do capitalismo, que se faz sentir de maneira cada vez mais aberta no nosso presente imediato. Lênin, em sua famosa obra, O Imperialismo, tratou de demonstrar como a fusão do capital bancário com o capital industrial, transformando-se em capital financeiro, levaria à uma crescente tendência à criação de monopólios. Estes, por sua vez, tornariam as disputas por mercados mais acirradas e violentas. Daí a caracterização famosa de que vivemos em uma época de crises, guerras e revoluções. Só a classe trabalhadora e sua revolução poderiam dar uma saída progressista a esta situação. Porém, a revolução mundial teve sua dinâmica congelada, por uma série de fatores objetivos e subjetivos, o que culminou na restauração burguesa após a ofensiva neoliberal, e varreu, momentaneamente, o horizonte da revolução do imaginário da classe trabalhadora. A isso correspondeu a instauração de uma ideologia baseada no ultra-individualismo e consumismo exacerbado. Portanto, há a adoção de uma ideologia padronizada de comportamento, objetivo e estético, em que a humanidade se realizaria plenamente apenas na sua relação de consumo com as mercadorias. É o fetichismo das mercadorias elevada à sua máxima potência. Entretanto, hoje, a grande questão que se abre é que a crise capitalista mundial, a despeito dos ventos de crescimento econômico (até quando?) do Brasil, demonstra a validade da caracterização de nossa época feita por Lênin. Não é possível mais sustentar a realização humana nas mercadorias adquiridas a crédito. O sistema está se decompondo. E os setores mais reacionários da sociedade já começam a colocar em marcha sua reação ideológica, em doses ainda muito pequenas se comparadas aos anos 30 do século passado, já que a classe trabalhadora ainda não expressou sua força. Vemos isso no Tea Party. Com outras características, vemos isso de maneira menos diretamente política nos episódios de homofobia, racismo e machismo ocorridos nas últimas semanas.
Em segundo lugar há que se partir de que sem o preconceito, a homofobia, o machismo e o racismo, o capitalismo não se sustenta. O motivo é bastante concreto. Tem suas origens na própria acumulação de mais-valia, elemento básico e essencial do funcionamento da lei do valor que rege o capitalismo. A burguesia, para poder ampliar seus lucros, distingue os seres humanos entre várias categorias, alguns valem mais no mercado de trabalho, outros menos. Assim, características físicas, de gênero, de origem nacional e social regulam o valor da mão-de-obra. Se você é mulher, receberá menos pelo mesmo trabalho realizado por um homem. Se for mulher e negra, menos ainda. Se for mulher, negra e nordestina, é provável que o que receberá mal possa ser chamado de salário. E, por qual motivo, se muitas vezes faz o mesmo trabalho que outros que recebem muito mais? É aí que entra a importância dos preconceitos disseminados pela burguesia para sustentar o capitalismo. Por exemplo, a segregação racial nos Estados Unidos só foi abolida em 1964, justamente no momento em que o país abre as portas para a entrada massiva de mão-de-obra estrangeira, sobretudo mexicana. Ainda que o preconceito contra os negros persista, e nunca acabará enquanto houver capitalismo, houve um pacto através das “ações afirmativas”, que só pôde ocorrer por que a burguesia imperialista passou a extrair lucros da mão-de-obra proveniente dos imigrantes latino-americanos e hispânicos. O grande trunfo da burguesia imperialista norte-americana foi assim separar os trabalhadores hispânicos dos trabalhadores negros, impedindo que unissem seu combate ao preconceito em um combate contra a exploração.

De outro prisma, podemos dizer que da mesma maneira que a burguesia não pode explicar sua permanência como classe dominante, num sentido materialista-histórico profundo, pois se isso fosse feito se chegaria à conclusão que seu jugo atual é regressivo e provedor das misérias econômicas, morais e intelectuais que afligem a humanidade, tampouco os preconceitos disseminados pelo capitalismo podem ser apreendidos de acordo com um sentido minimamente coerente. Existem como afirmações apriorísticas, construídas historicamente, para garantir a extração de lucro e atender aos interesses das burguesias na exploração de suas próprias classes trabalhadoras, e no caso das burguesias imperialistas, para justificar o massacre e o espólio sobre os demais povos do mundo. Foi assim com a perseguição do nazismo aos judeus. É assim na perseguição de palestinos pelos israelenses hoje. Os preconceitos legitimam a idéia de que os dominadores são mais humanos que os dominados. De que a dominação não se dá por conta de interesses de uma classe, mas tem origens “naturais”.
Os preconceitos e a opressão acabam tomando vida própria, rompendo as amarras da dominação econômica direta. Não se sabe se os três grupos de indivíduos do caso de homofobia da USP, do “rodeio das gordas” do InterUnesp, e a figura que clama pela morte dos nordestinos são parte da patronal diretamente. Mas o que eles manifestaram não era mera “alienação” juvenil, como muitos poderiam acreditar, mas uma posição inconsciente de classe, que antecipa uma ideologia perigosamente já experimentada na história. Digamos inconsciente porque nenhum deles se declarou abertamente membro de uma organização ultra-direitista. Porém, longe está de ser uma manifestação, condenável decerto, mas que não é para nada inocente.
Os nazistas, não nos esqueçamos, davam aulas em suas universidades sobre como as características físicas dos judeus demonstravam que seriam inferiores e que, portanto, seu extermínio era não só legítimo, mas necessário para que a humanidade se desenvolvesse em base a seus “melhores genes”. Menghele, o odioso médico que chefiou o campo de Aushwitz, realizou milhares de experimentos para alterar as características físicas dos detentos, como por exemplo, injetar tinta azul nos olhos das vítimas, numa tentativa de “arianizar” os que ali estavam. Mas estas lições de bestialidade que só as mais execráveis poeiras de humanidade poderiam executar foram antecedidas por uma preparação ideológica e material de anos a fio. Paralelo ao apoio nas classes médias arruinadas da Alemanha contra as organizações do movimento operário, os nazistas edificaram a ideologia segundo a qual as diferenças não poderiam existir. De que tudo que não seguisse os conceitos determinados pela “beleza e pureza” arianas deveria perecer. De que a superioridade de uns sobre os outros seria natural… Isso justificaria o comportamento de humilhação e opressão em proporções bárbaras de uns sobre outros? Em escala bastante menor, é certo, mas não estaríamos diante da emergência do embrião de uma ideologia similar, adequada às condições históricas atuais?
Trotsky, o grande revolucionário russo, analisando a situação francesa dos anos 30 da década passada, quando o país atravessava uma grave crise econômica, política e social, estando sob a dominação de um governo bonapartista de inspirações fascistas, questionará contundentemente a noção de que as classes médias são por definição os setores moderados e democráticos da sociedade capitalista. “Quando a classe média perde as esperanças é facilmente atacada pela raiva e se dispõe a abandonar-se a medidas das mais extremas. (…) O fascismo unifica e dá armas às massas dispersas; de uma ‘poeira’ de humanidade – segundo nossa expressão – faz destacamentos de combate. Assim dá à pequena-burguesia a ilusão de ser uma força independente. Ela começa a imaginar que, realmente, comandará o Estado. Não há nada de surpreendente em que estas ilusões e esperanças lhe subam à cabeça!”.
Assim, Trotsky dizia que uma parcela da pequena-burguesia se alia ao proletariado, enquanto outra se lança aos braços da burguesia. Evidentemente não estamos em uma situação em que isso ocorra da maneira como Trotsky aqui descreve. A polarização social está ainda longe de atingir um grau que abra este tipo de situação, sobretudo pela ausência de protagonismo da classe trabalhadora. Porém, a crise capitalista internacional segue vigente, e anuncia que estes momentos virão. Sua resolução muito dependerá da capacidade da esquerda de nos momentos preparatórios como o que vivemos, responder aos ensaios reacionários da classe antagônica de maneira contundente. É preciso, portanto, que a esquerda de conjunto se levante contra os episódios ocorridos, de maneira veemente, rompendo os limites da superficialidade, com que a mídia (e no caso da Unesp a própria reitoria) busca retratar tais casos, apesar de ter que condenar tais ações. O que está em jogo é a seriedade com a qual serão encarados os embates do futuro. Lênin, outro gigante da revolução, nunca esqueceu de chamar a atenção da juventude e das massas trabalhadoras para o fato de que a consciência da classe operária – certamente a classe mais prejudicada com o avanço de tais manifestações apodrecidas de vida, como a homofobia, o racismo e o machismo – não pode ser uma consciência política verdadeira, se os operários não estiverem habituados a reagir contra todo abuso, toda manifestação de arbitrariedade, de opressão e de violência, onde quer que se produza, quaisquer que sejam as classes atingidas; e a reagir justamente do ponto de vista revolucionário, e não sob qualquer ponto de vista. Nesse sentido, fazemos coro à pronta nota de repúdio solta pelo Sindicato dos Trabalhadores da USP (SINTUSP) acerca do caso InterUnesp.
A esquerda, a classe trabalhadora, os movimentos de mulheres e de direitos humanos, bem como a juventude, sobretudo das universidades em questão, tem de responder à altura, não apenas punindo os culpados, mas criando um ambiente de completa e resoluta intolerância contra este tipo de manifestação. Colocamos nossos corpos, vozes, força e vontade na mais decidida defesa contra todas as opressões e discriminações!

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