domingo, 23 de agosto de 2009

na sala e na mente - industrialização da alfabetizadora Cleunice Orlandi

Comento esse artigo, que recebi por email, em itálico, levando em consideração que minha área de atuação é ensino de artes e não alfabetização.

Alfabetização hoje
Professora Cleunice Orlandi de Lima
O Brasil importou as teorias de alfabetização de Emília Ferrero e deseja, a qualquer custo, implantá-las aqui. Eu particularmente, não aceito tais teorias e eis os motivos:
Emília Ferrero nasceu na Argentina, estudou na Suíça e mora no México.

Não é possível desqualificar qualquer teoria ou proposta por serem estrangeiras, isso é xenofobia. Significativos filósofos, artistas, educadores e pensadores são de outros países, assim como muitos países adotam a pedagogia do oprimido de Paulo Freire, ou o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, mesmo tendo culturas diferentes. O lastro intelectual, deixado por importantes pensadores, não se perde no tempo e no espaço. Não me refiro a Emília Ferrero, pois não conheço sua obra e não defendo-a, portanto, só estou problematizando esse discurso preconceituoso e reducionista.

Não sabe falar nossa língua, desconhece nossa cultura, ignora nossa realidade e, acima de tudo, nunca alfabetizou! Ela está sendo badalada porque, na Suíça, foi discípula de Piaget. Só por isso. Se tivesse sido aluna de um Zé da Silva qualquer, lá no Pantanal, suas idéias nem seriam ouvidas, mesmo que fossem excelentes. E o que é a Suíça — país onde ela aprendeu a “alfabetizar”?

Nesse sentido, Cleunice tem razão, pois nossos grandes artistas, compositores e pensadores são desconsiderados, também por considerarmos que o Brasil é subdesenvolvido intelectualmente (ver Roberto Schwarz, que tem bons artigos a respeito).

A Suíça é menor que o Rio de Janeiro, não tem inflação e tem o sistema monetário mais estável do mundo (os nossos marajás escondem seu dinheiro nos bancos da Suíça).
As maiores cidades de lá não têm mais que 600 mil habitantes. O analfabetismo foi erradicado antes de Emília nascer. Lá não há pobres nem fracos, pois o próprio clima se encarrega de acabar com eles (num frio de mais de 30 graus negativos, não há pobre que agüente). A Constituição de 1874 ainda está em vigor. As escolas são verdadeiros cartões postais: prédios sólidos, enormes, cercados por alamedas ajardinadas imensas.
Número de alunos por classe é reduzido (aliás, lá eles nem têm crianças e vem comprar bebês brasileiros). Os professores são bem pagos. A tecnologia é uma das mais precisas do mundo. O povo é tão desprovido de problema, que a Suíça tem o maior índice de suicídios do mundo. Suicídios, por falta de problemas!!!
Compare isso ao Brasil:
Até 50 alunos numa classe alfabetização, em prédios caindo, sem água potável, ladrões roubando até merenda e cadernos. Professores mal pagos abandonando a profissão para os mal formados, leigos, semi-alfabetizados. Salários com até 5 meses de atraso, greves anuais, cavalos pisoteando quem reclama. Sem material didático e quando nos chega algum, não pode usar, senão acaba.
Sem bibliotecas, sem giz, sem carteiras. Alunos cheios de amarelão, sarna, piolho, fome, frio, verminose, tosse de cachorro. Superpopulação (só na cidade de São Paulo, nascem mais de 400 mil crianças por ano!). Um clima tão bom, que poucos morrem de frio ou calor; pobres e doentes vivem muito, pondo mais filhos no mundo, que vão à escola mais para comer, do que para aprender a ler. E autoridades, que só sabem mandar papéis — papéis para a escola inteira; papéis aos montes, que devem ser lidos às pressas, preenchidos e devolvidos antes da chegada de novos papéis. Papéis, para mascarar a incompetência em administração.
É nesse ambiente, que nossas mui sábias autoridades exigem que se aplique o modelo educacional da Suíça!! Mas quem terá sido Piaget, que mesmo morto, se faz presente através de Emília Ferrero?

A autora do artigo prefere criticar a pedagogia que se tenta aplicar no Brasil, não o sistema educacional brasileiro. Não há pedagogia que se aplique a essas condições, muito menos a tradicional, que somente condiciona a técnica e não o pensamento, prorrogando sua estabilidade e não sua transformação.

Piaget era francês e desenvolveu suas idéias na Suíça. Tudo do que escreveu, foi tendo em vista aquelas crianças bem tratadas, bem amadas, saudáveis, protegidas por sistema político e social perfeito. Piaget nunca se importou com o Brasil, nunca estudou nosso povo, para desenvolver uma prática aplicável aqui. E, prova disso, está na viagem que fez ao Rio de Janeiro, em 49, para uma conferência e se recusou a visitar São Paulo, COM MEDO DE SER PICADO POR COBRA! Cobras, nas ruas de São Paulo! Nota-se, pois, sua total ignorância, indiferença e até desprezo pelo Brasil. Para Piaget, não passávamos de selvagens e ele não abrangia selvagens nos seus estudos. Este era o homem, cujas idéias estão sendo impostas às nossas escolas.

Não podemos negar que naqueles tempos tinham cobras em São Paulo, e ainda hoje, em regiões próximas a terrenos e parques com mato alto ainda encontramos isso. Não vejo desprezo nisso, e não podemos julgar sem ouvi-lo, pois no texto escrito não fica claro a intenção do discurso, pode haver alguma ironia que não percebemos.

Emília afirma que os alunos devem construir seu próprio conhecimento como se conhecimento pudesse ser construído assim, de qualquer maneira, ao sabor de cada pessoa, como se o conhecimento não estivesse já, todo com suas estruturas cimentadas, só à espera que nos apossemos dele e não que o construamos.

A ignorância aqui é da autora, não é de qualquer maneira que se aprende no construtivismo, é dando subsídios para a criatividade e pensamento, ao contrário do tradicionalismo, que visa a repetição e decorebas, que funcionam, mas não levam à reflexão. Estranho esse argumento de conhecimento com estruturas cimentadas, isso só se dizia no período da Idade Média, para manter a população na ignorância e alienação, será que ela não percebeu que alguma coisa mudou de lá pra cá?

Se assim não fosse, não precisaríamos de escolas, cada qual criaria seu próprio sistema de escrita e numeração, mesmo que fossem diferentes dos sistemas de escrita e numeração construídos pelas demais pessoas da mesma casa. Cada qual constrói o seu, como quiser. Seria o caos!

A autora mesmo se critica, se fosse assim, não precisaríamos de escolas, logo, não é assim.

E mais: Se a construção de conhecimento for válida para a alfabetização, ela deve ser válida para as demais atividades. Neste caso, deve-se entregar as chaves do carro à menina de 7 anos, para que ela construa seu próprio conhecimento sobre dirigir! E pode-se entregar ao menino de 6 anos, uma arma carregada, para que ele construa seu próprio conhecimento sobre o manejo de armas. E deve-se empurrar a criança que ainda não sabe nadar, de cima do trampolim da piscina, para que ela tenha oportunidade de construir seu conhecimento sobre natação. Se o construtivismo estiver certo, então poderá ser aplicado em todas as atividades, ué!

Ela é válida em todas as atividades. A criatividade, os modos de aprender, de descobrir novos caminhos, a não estagnar perante o considerado “certo” ou o “foi sempre assim” deve ser utilizado em todos os ramos da sociedade. O que perdura são técnicas de submissão, conformação do pensamento e assassinato da criatividade e crítica. A autora novamente faz uma simplificação, pois o construtivismo não exclui o mestre, apenas incentiva-o a elaborar propostas para o aprendiz descobrir as respostas, que mesmo erradas, vão sendo corrigidas com a percepção, também estimulada e importante mais do que nunca, pois vivemos um tempo de profunda alienação.

Emília condena a prática de se corrigir a criança, quando esta faz algo de maneira incorreta. Segundo ela, depois de errado, aprende-se o certo. E eu retruco: É falso! Depois de errado, nunca mais se aprende o certo. Quem aprendeu a datilografar com apenas dois dedos, nunca mais vai aprender a usar os dez dedos, porque o erro se fixou. “A lã, uma vez manchada, jamais readquire a alvura primitiva” (Pestalozzi).

Isso é puro determinismo, e culpabilização dos professores de todo o mundo pela barbárie que se segue, pois se a coisa está assim, é por culpa dos primeiros mestres que “mancharam a lã” de cada indivíduo. Como disse no argumento anterior, errando se aprende, se houver percepção, isso é o papel do professor, formar um cidadão sensível e atento às suas atitudes e à dos outros, atuando criticamente em todas as atitudes tomadas.

Os apreciadores de Emília são aqueles que, como ela, nunca alfabetizaram. Devido sua incapacidade de lecionar, safaram-se da sala de aula e hoje, dão ordens absurdas sobre alfabetização. Por estes e outros motivos que não declinei, não aceito as teorias de Emília Ferrero. Se suas idéias fossem mesmo tão boas, Emília teria nos legado uma prática de ensino e não apenas teorias.

A autora fala em tese, não há sequer uma evidência empírica que os apreciadores do construtivismo não aplicam suas teorias com os aprendizes. A autora deveria aprender que o fato de discordar do método, não quer dizer que ele seja impossível, e deveria encontrar melhores argumentos técnicos para defender a sua forma de atuação, em contraposição ao que ela considera absurdo.

Mas não sou radical. Assim que ficar provado que as idéias dela são as melhores tanto para o centro de São Paulo, quanto para uma tribo do Amazonas (se a teoria for certa, ela deve funcionar em qualquer parte do mundo), aí sim, darei a mão à palmatória.

Nenhum método é capaz de “funcionar”, sem a criatividade, sem o pensamento, pois o ser humano não é máquina, creio que cada ser humano tem facilidade de aprendizado com diferentes métodos, não se pode ter uma escolha binária, como o bem e o mal. Não se pode negar a complexidade do ser humano e dos diferentes ambientes do planeta, por isso defender apenas um caminho, e condenar outros totalmente, é continuar com práticas autoritárias e insensíveis, mesmo fascistas.

Se as primeiras turmas alfabetizadas por teorias ferreiristas enfrentarem os vestibulares com o mesmo brilhantismo nosso, do tempo de “A pata nada”, aí sim, estarei convencida. Mas, até lá, continuarei a achar que Emília Ferrero é um engodo sofisticado e continuarei a fazer-lhe oposições.

Em primeiro lugar, o vestibular não avalia em nada o conhecimento do ser humano, pode ser um idiota, um ditador, um assassino, um empresário explorador de mão de obra, que memorizou alguns dados, teve um pouco de sorte e passou no vestibular. Como já disse, se não houver pensamento crítico, formação para a criatividade, a sociedade não se transformará. Em segundo lugar, hoje vemos diversas escolas com métodos construtivistas formando estudantes que passam no vestibular. A autora precisa aprender a não citar dados que ela não conheça pesquisas ou fatos provados sobre o assunto, revelando preconceitos.

(Professora! Você tem o direito de optar entre os métodos de ensino. Ninguém pode obrigá-la a usar Emilia ou qualquer outra metodologia este direito está garantido pelo Estatuto do Magistério, no art. 61).

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